CAPÍTULO III
A PESSOA E OS SEUS DIREITOS - II. A PESSOA HUMANA «IMAGO DEI»
b) O drama do pecado
116 [...]A
conseqüência do pecado, enquanto ato de separação de Deus, é
precisamente a alienação, isto é, a ruptura do homem não só com Deus,
como também consigo mesmo, com os demais homens e com o mundo
circunstante: «a ruptura com Deus desemboca dramaticamente na divisão
entre os irmãos. Na descrição do “primeiro pecado”, a ruptura com Javé
espedaçou, ao mesmo tempo, o fio da amizade que unia a família humana;
tanto assim que as páginas do Gênesis que se seguem nos mostram o homem e
a mulher, como que a apontarem com o dedo acusador um contra o outro;
depois o irmão que, hostil ao irmão, acaba por tirar-lhe a vida. Segundo
a narração dos fatos de Babel, a conseqüência do pecado é a
desagregação da família humana, que já começara com o primeiro pecado e
agora chega ao extremo na sua forma social»225. Refletindo sobre o mistério do pecado não se pode deixar de considerar esta trágica concatenação de causa e de efeito.
117 O
mistério do pecado se compõe de uma dúplice ferida, que o pecador abre
no seu próprio flanco e na relação com o próximo. Por isso se pode falar
de pecado pessoal e social:
todo o pecado é pessoal sob um aspecto; sob um outro aspecto, todo o
pecado é social, enquanto e porque tem também conseqüências sociais. O
pecado, em sentido verdadeiro e próprio, é sempre um ato da pessoa,
porque é um ato de liberdade de um homem, individualmente considerado, e
não propriamente de um grupo ou de uma comunidade, mas a cada pecado se
pode atribuir indiscutivelmente o caráter de pecado social, tendo em
conta o fato de que «em virtude de uma solidariedade humana tão
misteriosa e imperceptível quanto real e concreta, o pecado de cada um
se repercute, de algum modo, sobre os outros»226.
Não é todavia legítima e aceitável uma acepção do pecado social que,
mais ou menos inconscientemente, leve a diluir e quase a eliminar a sua
componente pessoal, para admitir somente as culpas e responsabilidades
sociais. No fundo de cada situação de pecado encontra-se sempre a pessoa
que peca.
118 Alguns
pecados, ademais, constituem, pelo próprio objeto, uma agressão direta
ao próximo. Tais pecados, em particular, se qualificam como pecados
sociais.
É igualmente social todo o pecado cometido contra a justiça, quer nas
relações de pessoa a pessoa, quer nas da pessoa com a comunidade, quer,
ainda, nas da comunidade com a pessoa. É social todo o pecado contra os
direitos da pessoa humana, a começar pelo direito à vida, incluindo a do
nascituro, ou contra a integridade física de alguém; todo o pecado
contra a liberdade de outrem, especialmente contra a suprema liberdade
de crer em Deus e de adorá-l’O; todo o pecado contra a dignidade e a
honra do próximo. Social é todo o pecado contra o bem comum e contra as
suas exigências, em toda a ampla esfera dos direitos e dos deveres dos
cidadãos. Enfim, é social aquele pecado que «diz respeito às relações
entre as várias comunidades humanas. Estas relações nem sempre estão em
sintonia com a desígnio de Deus, que quer no mundo justiça, liberdade e
paz entre os indivíduos, os grupos, os povos»227.
119 As conseqüências do pecado alimentam as estruturas de pecado*,
que se radicam no pecado pessoal e, portanto, estão sempre coligadas
aos atos concretos das pessoas, que as introduzem, consolidam e tornam
difíceis de remover. E assim se reforçam, se difundem e se tornam fontes de outros pecados, condicionando a conduta dos homens228.
Trata-se de condicionamentos e obstáculos que duram muito mais do que
as ações feitas no breve arco da vida de um indivíduo e que interferem
também no processo de desenvolvimento dos povos, cujo retardo ou
lentidão devem ser julgados também sob este aspecto229.
As ações e as atitudes opostas à vontade de Deus e ao bem do próximo e
as estruturas a que elas induzem parecem ser hoje sobretudo duas: «por
outro lado, a sede do poder, com o objetivo de impor aos outros a
própria vontade. A cada um destes comportamentos pode juntar-se, para os
caracterizar melhor, a expressão: “a qualquer preço”»230.
c) Universalidade do pecado e universalidade da salvação
120 A doutrina do pecado original, que ensina a universalidade do pecado, tem uma importância fundamental: «Se dizemos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós» (1 Jo 1,
8). Esta doutrina induz o homem a não permanecer na culpa e a não
tomá-la com leviandade, buscando continuamente bodes expiatórios nos
outros homens e justificações no ambiente, na hereditariedade, nas
instituições, nas estruturas e nas relações. Trata-se de um ensinamento
que desmascara tais engodos.
A
doutrina da universalidade do pecado, todavia, não deve ser desligada
da consciência da universalidade da salvação em Jesus Cristo.
Se dela isolada, gera uma falsa angústia do pecado e uma consideração
pessimista do mundo e da vida, que induz a desprezar as realizações
culturais e civis dos homens.
225 João Paulo II, Exort. apost. Reconciliatio et paenitentia, 15: AAS 77 (1985) 212-213.
226 João Paulo II, Exort. apost. Reconciliatio et paenitentia, 16: AAS 77 (1985) 214. O texto explica, ademais, que esta lei da descida, e esta comunhão no pecado,
em razão da qual uma alma que se rebaixa pelo pecado arrasta consigo a
Igreja, e, de certa maneira, o mundo inteiro, corresponde uma lei de elevação, o profundo e magnífico mistério da Comunhão dos Santos, graças à qual se pode dizer que cada alma que se eleva, eleva o mundo.
227 João Paulo II, Exort. apost. Reconciliatio et paenitentia, 16: AAS 77 (1985) 216.
* João Paulo II, Carta encicl. Sollicitudo rei socialis, 36.37: AAS 80 (1988) 561-564; cf. João Paulo II, Exort. apost. Reconciliatio et pænitentia, 16: AAS 77 (1985) 213-217.
228 Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1869.
229 Cf. João Paulo II, Carta encicl. Sollicitudo rei socialis, 36: AAS 89 (1988) 561-563.
230 João Paulo II, Carta encicl. Sollicitudo rei socialis, 37: AAS 89 (1988) 563.
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