Missa Romana na Forma Extraordinária

Livreto do fiel - Português/Latim

A arte da pregação - Pe. Antonio Rivero, LC

Como conseguir uma comunicação eficaz e atrativa

Doutrina Eucarística

Um Catecismo sobre a Eucaristia - Dom Antônio Affonso de Miranda, SDN

Curso Bíblico para leigos

A riqueza da Palavra de Deus

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

 Recebi de um amigo o livro em questão, talvez na tentativa de diminuir meu "preconceito" para com a Fraternidade Sacerdotal São Pio X, ou para justificar a paixão de tantos por essa instituição, ao passo que com mesma paixão atacam outras. 


O livro, de 270 páginas, lançado pela Editora Gratia em julho de 2024, é apresentado assim, na sinopse da capa:

Em FSSPX: A Defesa, Kennedy Hall oferece uma das mais brilhantes e
abrangentes defesas acerca da Fraternidade Sacerdotal de São Pio X
(FSSPX), que fora publicada até o momento. Sem deixar pedra sobre pedra,
Hall aborda todas e quaisquer objeções levantadas contra a FSSPX,
incluindo ataques recentes de vários críticos da Fraternidade. Leitores
com pouco conhecimento da FSSPX ou leitores com amplo conhecimento, sem
dúvida, acharão este livro tão útil como uma espécie de “loja de
conveniência”, para os assuntos ligados à FSSPX.
[...]
Esta Apologia analisa as considerações teológicas, canônicas e
históricas para a fundação da FSSPX. No final, todas as considerações se
resumem a Salus Animarum Suprema Lex. [...].

O livro realmente descontrói vários desentendidos do público menos especializado, mas é bastante pretencioso dizer que "sem deixar pedra sobre pedra, Hall aborda todas e quaisquer objeções levantadas contra a FSSPX". Na verdade, deixa muitas pedras no caminho, bastante empilhadas. É uma defesa apaixonada, sem dúvida, que afaga os simpatizantes, mas não convence os críticos, porque não aborda os principais problemas (que é a negação, por parte deles, da Missa Nova e do Concílio Vaticano II); ao invés, repete exaustivamente a ideia de "estado de necessidade" e do suposto direito de agirem assim, porque Lefebvre quis assim e tinha direito de agir assim.

O fato crucial que desmonta a tese do "estado de necessidade" não é sequer mencionado pelo autor, mas o prefaciador, Padre Charles Murr, o mencionou, quando conta os fatos que precederam as consagrações episcopais sem mandato, que resultaram em excomunhão automática dos envolvidos: 

"[...] o novo pontífice, o Papa João Paulo II, queria uma convergência de ideias com o Arcebispo Lefebvre. Ele queria uma reconciliação. [...] 

[O Cardeal Gagnon] chegou a Écône em onze de novembro de 1987, e permaneceu lá até nove de dezembro. Embora ele não tenha conseguido convencer Lefebvre a aceitar a proposta da Santa Sé -- ou seja, principalmente, que Lefebvre consagrasse apenas um novo bispo para garantir a sobrevivência da FSSPX, e não quatro) -- ele (Gagnon) não considerou a missão um fracasso completo. [...]

Francamente, achei a opinião do Cardeal sobre o Arcebispo Marcel Lefebvre, surpreendente. 'Ele [Lefebvre] não confia no Vaticano. E quem ode culpá-lo por isso? Você pode? Durante anos, ele tentou lidar com o [Secretário de Estado] Villot e o [Prefeito de Universidades e Seminários Católicos] Garrone. E durante anos, tudo o que fizeram foi bloquear seus esforços para falar e argumentar diretamente com o Santo Padre. Você também desconfiaria do Vaticano. Embora eu não possa tolerar o que ele fez (consagrando quatro bispos em vez de um), posso entender por que ele fez isso [...]'".

O livro não trata do assunto, como já disse, e talvez o leitor que desconheça os fatos não tenha percebido o que ocorreu. Resumo assim:

  • A FSSPX existia, funcionava e crescia normalmente, mas precisava de um bispo para dar continuidade;
  • O Vaticano sabia disso, mas o mandato para ordenar um bispo era sempre adiado, e o acesso de Lefebvre ao Papa Paulo VI era dificultado por alguns prelados de Roma, segundo o relato;
  • Com João Paulo II a situou mudou: o próprio Cardeal Ratzinger, segundo o relato, foi responsável pela intercessão ao Papa, que encarregou o Cardeal Gagnon de uma visita;
  • A visita foi positiva, e o Cardeal levou a Roma ótimas impressões da Fraternidade, mas Lefebvre não aceitou a proposta de ordenar um bispo, pois queria quatro! (o relato menciona isso duas vezes, uma vez pelo Padre Murr e outra na citação do Cardeal).

Veja, se Roma concedeu a ordenação de um bispo, não havia "estado de necessidade", mas apenas uma grande desconfiança. Se tivesse aceitado ordenar um bispo, manteria a ordenação dos padres, a Fraternidade estaria canonicamente reconhecida e a história seria outra. 

Só Deus sabe qual seria o futuro. Lefebvre quis julgar o rumo da Igreja de acordo com sua percepção subjetiva. Aliás, quase toda a argumentação de "defesa" de Lefebvre e da FSSPX é subjetiva. 

Continuemos com o livro.

Na Apresentação, o autor já começa a expor um pouco dessas avaliações subjetivas. Diz ele, quando apresenta a questão da liturgia: "podemos usar nosso senso Católico e avaliar o que é condizente com a Majestade Divina e o que não é." (p. 22). Aqui ele tem em mente o julgamento que fazem da reforma litúrgica do Vaticano II. Segundo esse pensamento, eu posso julgar, com meu senso católico, que uma reforma litúrgica é ruim e não aceitá-la. Ora, nada mais contrário ao senso católico insurgir-se contra a legítima autoridade da Igreja de determinar os ritos. Só o Magistério da Igreja pode avaliar de forma autorizada o que é ou não é condizente com a Majestade Divina, não o "nosso" senso católico, que é bastante subjetivo se não é unânime.

Aqui poderíamos abrir um parêntesis para refutar uma tréplica que o autor (e quem concorda com ele) poderia fazer: o mundo católico estranhou, de fato, a reforma litúrgica, tal como aconteceu. Como aconteceu? Em muitos lugares, talvez na maioria, foi de improviso, com abusos e desobediência. Tal era a situação do clero, formado antes do Vaticano II, obviamente. Isso marcou profundamente o "senso católico", de modo que até hoje poucas pessoas têm acesso a uma missa conforme o missal. Não se pode, por isso, acusar a Igreja pelos frutos podres, pelo joio em meio ao trigo. O senso católica manda presumir que a reforma é boa, lícita, católica. Basta implementá-la corretamente. E se, futuramente, houver outra reforma, igualmente.

Continuando na Apresentação, o autor reconhece que os fiéis não têm o direito de escolher um rito simplesmente pelo gosto pessoal, mas têm o direto à Tradição. Isso ele o faz tendo em vista dizer, adiante, que se a reforma litúrgica foge à Tradição, os fiéis têm o dever de desobedecer a autoridade humana que promulgou o rito. Ora, mas quem diz o que é ou não é pertencente à Tradição? Quem julga a autoridade máxima da Igreja capaz de alterar os ritos? Certamente não é o "senso católico" de alguns padres e seus simpatizantes.

O autor acredita que práticas e hábitos são parte da Tradição, como transmissão do depósito de fé, da Revelação. Assim, práticas que não persistiram no tempo não fazem parte da Tradição, como por exemplo, cita a Comunhão na mão (p. 25). Ora, práticas, hábitos, disciplinas, mesmo o aspecto cerimonial da liturgia, não são parte do depósito de fé, logo podem desaparecer, ressurgir, se adaptar etc., se a autoridade disciplinar da Igreja o quiser.

O capítulo 1, intitulado "A Fumaça de Satanás", começa com uma citação descontextualizada de Paulo VI, onde ele dizia a frase-título:

"A Igreja não é mais confiável. Confiamos no primeiro profeta profano que vem nos falar em algum jornal..."

O autor coloca a situação como se fosse uma confissão de culpa. Isso é comum, infelizmente, e muitos interpretam - erroneamente, às vezes desonestamente - que o Papa se referia ao próprio Concílio Vaticano II ou à Missa Nova, mas na própria continuação da homilia ele faz a importante distinção entre o Concílio em si e a sua equivocada interpretação e aplicação. Pelo contrário, o papa atribui a ação de Satanás como uma tentativa de sufocar os frutos do Concílio.

No papel de representante dos defensores da FSSPX, o autor acredita piamente que Lefebvre "salvou" a Igreja (p. 33) por meio de um ato concreto heroico, para o qual "ninguém pode fornecer uma explicação teológica completamente satisfatória".

Em uma analogia da Igreja com um navio cujo "capitão fosse negligente em seu dever", diz que confia que o navio não vai afundar, mas que um tripulante heroico precisa salvar os passageiros. Essa é a "crise" - um navio que não pode afundar - que justifica um ato "heroico" de falta de fé, presunção, soberba e insubordinação de um tripulante: confortar a aflição de alguns passageiros com as ondas.

A linguagem dúbia do autor, em afirmar não afirmando que a Igreja fora da FSSPX professa e vive heresias, é evidente em vários pontos:

"Este autor afirma que há uma grave crise na Igreja e que ela é universal, o que significa que toca todas as particularidades da Igreja. Isso não significa que todo católico seja um herege, ou que todo sacerdote seja um modernista. Significa, no entanto, que a heresia e outros males são, infelizmente, normas".

Mas não aponta nada de concreto, em todo o livro.

No capítulo 2, "Quem é Marcel Lefebvre e o que é a FSSPX", ele afirma que Lefebvre "concordou com os documentos do Concílio". Fato é que apresentou reservas, como era normal nas discussões do Concílio, mas que os documentos finais foram aceitos e assinados em sua redação final. 

Imediatamente, o autor não vê a incoerência em afirmar que o problema é o Concílio, quando, na verdade, o problema veio não dos textos do Concílio, mas do pós-Concílio, da confusão generalizada feita por muitos padres que se aproveitaram dos rumores de mudanças para já aplicá-las, à revelia dos textos e ordens autênticas.

Curioso é que em nenhum lugar do livro se diz a data de fundação da FSSPX: 01/11/1970, 5 anos depois de encerrado o Concílio Vaticano II. Ou seja, o problema que levantam hoje (o Concílio) não era problema. A fundação é posterior à promulgação do novo Missal.

Nesse capítulo que pretendia ser histórico, omitiu totalmente e propositalmente o mandato de ordenar um bispo, que já mencionamos, pois demonstra conhecer essa objeção, e começa a justificar o ato de insubordinação como resistência à heresia, ao comparar a crise do Vaticano II com a crise ariana.

O capítulo 3 pretende responder à acusação de que a FSSPX estaria em cisma. Aqui não precisaríamos nos demorar, visto que eles afirmam, oficialmente, reconhecer o Sumo Pontífice atual e demais bispos. Então, juridicamente, não estão em cisma. 

Mas, na prática, há uma dubiedade. Afirmam que Lefebvre nunca estabeleceu uma Igreja ou hierarquia separada. Porém, no mesmo sermão das Consagrações episcopais que resultaram em excomunhão, Lefebvre cria estar aderindo a uma "Roma eterna" em que o papa e o episcopado de então estavam afastados. 

Na prática, criou uma igreja e uma hierarquia paralela. 

Na prática, ainda hoje, seus sacerdotes não se subordinam a ninguém que não seja da própria FSSPX.

Na prática, "um grupo cismático estabelece ou adere às suas próprias autoridades, negando a jurisdição eclesial e até mesmo o direito canônico da Igreja Católica" (p. 55), ainda que rezem, da boca pra fora, pelo Papa e pelo bispo local na liturgia.

Por várias vezes, o autor vai acusar o Papa João Paulo II de erro ou ignorância, porque na Carta Apostólica Ecclesia Dei classifica o ato de Lefebvre como cismático. Distorce desonestamente vários trechos da Carta, como quando tenta estabelecer uma excomunhão a todos os fiéis "ligados ao movimento de Lefebvre". Em vez disso, o que o papa faz é um apelo a não apoiar a FSSPX. 

Para apelar ao subjetivo e à desobediência, o autor exagera o teor do Motu proprio papal, dizendo que seria uma declaração supostamente vinculativa, mas que por conter erros é "legalmente insuficiente". Como se eles ligassem muito para as leis da Igreja...

No breve capítulo 4, o autor vai responder se, embora não em cisma, eles poderiam ser "cismáticos". Ele toma as duas palavras como sinônimas, então a resposta é óbvia: não estão em cisma e não são cismáticos. Mas poderíamos parafrasear uma de suas acusações sobre a Missa nova ("herética e heretizante"): podem não ser cismáticos, mas são "cismatizantes". Veremos.

O capítulo 5 continua a discussão sobre cisma/cismático. Uma frase me chama a atenção por sua dissimulada ignorância:

"Eles rejeitam a autoridade do Papa ou negam a autoridade do bispo em sua diocese? Ainda não encontrei um único sacerdote da FSSPX que tenha essa visão. Certamente não é a posição oficial da instituição." (p. 69)

É impressionante como conhecem a verdade mas a dissimulam para benefício próprio: 

"Se alguém declarar publicamente que um grupo é culpado de cisma, só deve fazê-lo depois que a autoridade apropriada da Igreja já tiver dada essa declaração". (p. 70)

Ora, foi o que o Papa fez, ao alertar sobre o "ato cismático", mas eles solenemente ignoram e sofisticamente manipulam.

O capítulo 6 tem por título: "A FSSPX está em comunhão com Roma". Parece irônico, mas na verdade aplicam o termo "estar em comunhão" simplesmente com o fato de não estarem excomungados, como se comunhão fosse um termo binário, que só comporta sim e não. 

O autor mesmo dá um exemplo de como se pode não estar em plena comunhão: "Usando essa lógica, diríamos que os grupos ortodoxos não estão em 'plena comunhão' ou que os protestantes estão em 'comunhão parcial' com os católicos". Só que não aceita essa lógica, tão simples para o senso católico e à eclesiologia. Com comparações exageradas e citações descontextualizadas, o autor preenche o livro com argumentos de cunho aparentemente jurídico, coisa que deplora quando vem dos "acusadores da FSSPX".

Ele usa da tolerância da Igreja para com a FSSPX como se fosse argumento da "plena comunhão". Além disso, comete várias imprecisões, que sinceramente já não sabemos se é proposital ou por ignorância. Por vezes até pensei que poderia haver problemas de tradução do livro (o original é em inglês), tamanha a confusão de alguns textos. Fica a dúvida, pois não tenho acesso ao original.

Por exemplo, ele afirma que "as excomunhões foram oficialmente reconhecidas como levantadas em 2009", podendo dar a entender que elas foram nulas desde o começo. Mas o que o papa fez em 2009 foi levantar, naquele ato, em 2009, as excomunhões. Lembremo-nos que excomunhão é uma pena. Levantar a excomunhão significa suspender as penas, não declará-las nulas.

Confusão (ou distorção proposital) fazem até com os textos dos santos. Citam São Roberto Belarmino assim: "só existe uma Igreja, não duas [... na mesma] profissão da verdadeira fé, a comunhão sacramental e a submissão ao legítimo pastor, o Romano Pontífice". Ao comentar esse mesmo claríssimo trecho, porém, dizem: "Há uma unidade interior e uma unidade exterior... Não é o corpo que une a alma, mas a alma que une o corpo; assim, desses dois níveis, a unidade interior da Igreja é, sem dúvida, o mais importante e a causa do outro". Tentam assim justificar sua absurda tese de que há duas Igreja, uma "Roma eterna" (eles) e uma outra Roma (o Papa com seus bispos), ao mesmo tempo que, se levarmos a analogia do corpo e alma ao seu extremo, estão afirmando que vivem com a alma fora do corpo. Ora, alma separada do corpo indica morte.

O capítulo 7 fala do "Status canônico irregular". O autor sabe e até o menciona, mas faz de conta que não, que "a FSSPX não tem uma situação 'normal'.". É só isso que se refere a situação "irregular": anormal, fora das regras. Ponto. Não precisava gastar páginas atacando o uso da expressão. Reconhecem que "a reconciliação precisa acontecer", mas "cabe a Roma reconciliar-se com a Tradição"(!!!) "Talvez possamos deixar de lados nossos [sic] Códigos de Direito Canônico e pensar com nosso [sic] senso católico sobre como nada disso faz sentido." (!!!) O autor espera que Roma defina o que significa o termo "irregular"!

Os últimos papas sofreram com essa birra. Todas as vezes que estenderam a mão, em gesto de misericórdia, estima e liberalidade, para conceder algum reconhecimento à FSSPX e a seus atos, tiveram seus gestos catalogados no rol do "reconhecimento", como cita exaustivamente esse capítulo. Quando, porém, aponta-se as irregularidades, acusam Roma de incompreensão, erro ou injustiça.

Nesse capítulo, o autor faz uma interpretação do cânone 76 totalmente confusa e non sequitur: "Isso sugere que os sacerdotes da FSSPX sejam pessoas jurídicas". Várias vezes confunde indivíduo com instituição. Ainda bem que ele admite logo em seguida (nunca sei se por ignorância ou malícia): "A situação é, como dissemos, totalmente confusa". (p. 95)

É curioso também como exigem clareza, uso de termos adequados, apesar da "situação anormal", mas todas as vezes que a Igreja o faz, e se o fizer futuramente com ainda mais clareza e rigor, infelizmente temos a impressão de que ignorarão solenemente.

O capítulo 8 continua o tema, agora falando do problema da incardinação e existência jurídica da FSSPX. Como já adiantamos, citam todos os privilégios e permissões que receberam, até declarações orais (como a permissão de ordenar sacerdotes), e tratam isso como se fosse o privilégio canônico (c. 76). Citam novamente a permissão do Papa Francisco para ouvirem confissões e assistirem matrimônios (neste caso se houver acordo local), mas agora acusam o mesmo Papa de estar "intencionalmente confundindo os fiéis, assim como um fariseu tentando pegar Cristo em um enigma jurídico", é claro, jogando essa acusação na boca dos críticos. (p. 98). 

Na falta de bons argumentos e documentos sobre o tema, o restante do capítulo é um tanto confuso, polemista e subjetivista. Usa de um legalismo extremo para não aceitar as decisões desfavoráveis à FSSPX. Às vezes o autor e seus citados cometem alguns atos falhos: "Um dia, a Providência permitirá sua reabilitação oficial" (palavras de Lefebvre que significam que a FSSPX não estava habilitada, regularizada, como permanece até a presente data). 

Para tentar mostrar como a Igreja é injusta com a FSSPX, o autor lembra que em 1975 a Santa Sé ordenou a supressão da Fraternidade, por conta das declarações de Lefebvre. Então pergunta: "O que aconteceria com os seminaristas que deveriam ser ordenados?". A resposta é simples: procurariam outro bispo, outro seminário, outra ordem religiosa. Mas não: para eles, o que deveria acontecer é a desobediência pura e simples, e afirma que "não havia um seminário tradicional funcionando virtualmente [sic] em nenhum lugar do mundo". De fato, a ordem superior foi solenemente ignorada. Diz ainda que essa decisão é apoiada pelo senso comum (p. 114). Fica cada vez mais difícil entender que senso comum é esse.

Ainda não é o capítulo adequado, mas agora o autor menciona o motivo da revolta de Lefebvre: a Missa nova. 

"Pouco antes das suspensões iniciais serem anunciadas, Dom Marcel Lefebvre foi visitado por um embaixador de Roma, que lhe teria dito que se ele rezasse apenas uma Missa Nova, tudo ficaria bem. É claro que o Arcebispo Lefebvre recusou, e ele se baseou no princípio de que a Missa Tradicional nunca foi revogada e que não era obrigatório celebrar a Missa Nova." (p. 116)

Ele estava certo de que a Missa tradicional nunca foi revogada, mas não quanto a não ser obrigatória a Missa Nova. Bastaria recorrer a todos os decretos de aprovação do novo Missal, que se tornou a forma ordinária do rito romano, gostemos ou não. Isso é bem básico, mas o autor insiste no ponto contrário, de que a Missa nunca foi revogada, como se esse fosse o ponto de discussão. Ora, existem outros institutos e até uma administração apostólica que celebram com o Missal anterior, porém a diferença é que não negam a Missa nova.

O autor conclui, teimosamente, que a FSSPX foi suprimida (sim, em 1975) por conta da insistência em rezar a Missa tradicional, o que é falso. Tentando levar seu argumento para o nível moral, o autor cita Santo Agostinho para dizer que não se deve obedecer a uma ordem perniciosa. Neste caso, ele considera perniciosa a Missa celebrada sob o novo missal, o que é um completo absurdo, segundo o senso comum que tanto evoca.

Se antes o argumento para a desobediência era o "fato" de não haver outros bispos e sacerdotes para atender os seminaristas de Lefebvre, agora o autor admite, não sei se em um exagero romântico ou cômico:

"[...] havia outros bispos que poderiam ter formado sacerdotes e outros sacerdotes que poderiam ter servido almas. Sim, havia outros bispos e outros sacerdotes, mas por algum motivo - talvez devido ao ataque de heresia e sacrilégio que tomou conta da Igreja em todo o mundo - dezenas de milhares de pessoas, talvez mais, estavam pedindo ao Arcebispo Lefebvre que fizesse algo para ajudá-los."

Como dissemos no início, é uma defesa tão apaixonada que chega a obscurecer as poucas razões que se poderiam encontrar. 

Neste ponto já quase poderíamos desistir do livro, mas não chegamos nem na metade! Aqui o autor começa a divagar sobre "a maior crise da história da Igreja", acusa mais uma vez os críticos de tecnicismo legais enquanto usa do mesmo artifício, antecipando os capítulos 9 e 10, que continuam falando de jurisdição nesses mesmos termos. 

Segue-se o exagero da "defesa", das analogias e das generalizações: 

"os fiéis que seguiram as novas fórmulas [do Concílio] descobriram que o coração deles não se enchiam [sic] com a caridade divina, nem com o resultado daquele 'reavivamento', mas sim, tiveram uma miocardite espiritual, que ameaçou a vida eterna de todos". (p. 135)

Esse capítulo visa demonstrar o "estado de necessidade" aludido pelo Mons. Lefebvre (que já está claro que não existiu), mas o autor vai desviando o foco para uma suposta necessidade eterna (porque não aceitam o Novus Ordo), com os costumeiros exageros. Diz que aqueles seminaristas corriam "sério risco de serem privados de conhecimento e de saúde espiritual" (p. 143); diz que atualmente "todos já participaram de alguma missa com palhaços" (p. 144); que "pode ser moralmente impossível que alguém participe do Novus Ordo como tal" (p. 144) ao mesmo tempo que comete mais um ato falho ao citar o anátema do Concílio de Trento aos que desprezam os ritos aprovados pela Igreja.

O desprezo pela Missa Nova chega ao nível da ameaça: "corre o risco de absorver uma teologia protestante para você e seus filhos. Se a Missa Nova não te preocupa, então talvez o espírito herético inerente ao protestantismo já tenha sido absorvido por você".

Lamento que o autor, aparentemente, nunca tenha assistido uma Missa Nova rezada segundo o missal. 

O capítulo 11 vai tratar de "Erro comum e Jurisdição de Suplência", questão de direito principalmente sacramental, que nem precisaria ser discutida, já que a Igreja reconhece os sacramentos realizados pelos padres da FSSPX. O problema é que o autor insiste nisso no capítulo 12 ao defender os Tribunais da FSSPX.

Em resumo, é o seguinte: a FSSPX não aceita os tribunais da Igreja católica, então criaram os próprios. Pior: o motivo parece ser a ignorância do que são os processos e declarações de nulidade matrimonial, que o autor chama, sem exceção, de "anulações", dezenas de vezes. E não, ele não está se referindo assim somente ao que ocorre nos tribunais diocesanos, mas até ao que os tribunais da FSSPX faz: 

"O leitor não deve ter a impressão de que a FSSPX rejeita de fato qualquer decisão tomada por um tribunal diocesano por ser diocesano, mas sim que os sacerdotes da FSSPX se importam tanto com as almas, que simplesmente querem garantir que anulações tenham sido obtidas validamente para ministrar às almas corretamente".

Não bastasse esse ato grave de ignorância do direito canônico, o autor se mete a comentar e criticar cada um dos cânones que tratam das falhas de consentimento que poderiam tornar o matrimônio nulo (nunca é anulado, mas declarado nulo porque falhou no seu ato constitutivo; nunca existiu). Além disso, demonstra ignorância quanto ao sacramento do matrimônio, cujos ministros são os nubentes, não a testemunha da Igreja. Assim, justificam que um casal "deve" procurar um sacerdote da FSSPX para se casar validamente "em caso de necessidade"! (p. 153). O gosto pessoal do casal pela FSSPX ou a falta de tempo para a catequese matrimonial é um "caso de necessidade"!

E nesse nível, ainda tem a coragem de defender a existência dos "tribunais da FSSPX" "considerando a grave necessidade que recai sobre as almas que não são capazes de se aproximarem dos tribunais normais devido a um grave defeito nas posições teológicas dos próprios tribunais etc."! (p. 157)

Com essas desculpas esfarrapadas, rejeitam também o Código de Direito Canônico de 1983 (p. 167) e julgam eles mesmos questões de ordens sacras e vida religiosa. (cap. 12)

No capítulo 13 inicia-se um preâmbulo sobre as Consagrações e nomeações episcopais (cap. 14), no intuito de justificar a desobediência ocorrida. O aludido estado de necessidade pode ser alegado por qualquer um, sob qualquer pretexto. Fica claro no próprio texto que Lefebvre sabia das penas, sabia que não havia necessidade, mas insistiu em desafiar o Papa. Foi um ato premeditado de rebeldia.

A lista de comparações descabidas chega ao Papa João Paulo II, que "ficou feliz em desobedecer quando lhe convinha", no caso das ordenações sacerdotais (não episcopais; o autor não tem senso de proporções) ocorridas na Checoslováquia em um contexto de uma ditadura comunista. Dedica o capítulo 15 inteiro a essa comparação absurda.

Para poupar a paciência do leitor, saltamos para o capítulo 17 para mostrar mais um ato falho: "em uma carta [Lefebvre] propôs uma solução razoável para a irregularidade canônica da FSSPX". Na mesma p. 200, o nível de paixão da defesa chega a um nível perigoso: "Lefebvre está em uma posição única [...], parecia ser o instrumento da Providência". Para ser justo, essa prepotência deriva do próprio Lefebvre, que disse no sermão da fatídica ordenação: "a obra que o Bom Deus colocou em nossas mãos é tal, que diante desta escuridão de Roma, desta teimosia das autoridades romanas no seu erro, desta recusa em regressar à Verdade e à Tradição, parece-me que o Bom Deus pede que a Igreja continue."

Ele já se considerava "a última bolacha do pacote".

Na p. 204 é mencionado o acordo feito entre Ratzinger, através de uma Comissão, e Lefebvre, em abril e maio de 1988, mas omite o teor (já o mencionamos). Mas ele não confiou, não honrou a palavra, e o autor ainda sugere que ele agiu inspirado por Nossa Senhora, apesar de dizer que não está sugerindo (p. 206), tamanha a audácia de tal ideia.

O capítulo 18 é uma tentativa de resumir as "razões" para as consagrações, começando, obviamente, pelo "estado duradouro de necessidade". Acrescenta-se o evento inter-religioso de Assis, uma resposta "dubia" de Roma "que afirmava uma orientação herética", os documentos do Vaticano II e "uma aparente heresia no Código de Direito Canônico". Não toca mais no verdadeiro motivo, que é simplesmente o novo Missal, como demonstrado, e prossegue em uma defesa confusa dos pontos citados. A conclusão que chegamos com esse capítulo é que "fora da FSSPX não há salvação".

O capítulo 19 pretende discutir a Carta Ecclesia Dei adflicta, que é o Motu proprio pelo qual o Papa João Paulo II declarou a excomunhão, prevista latae sententiae, em que incorreram o ordenante e os 4 ordenados sem mandato pontifício, ato que se deu em 30/06/1988. Nenhum novo argumento é apresentado, tanto que, ao invés de comentar a Carta, retoma outros temas, como a ideia de cisma, de estado de necessidade, de culpa, de confundir sujeito com instituição, e termina o capítulo citando um louvor do recém excomungado Arcebispo Viganó a Lefebvre. Tudo bem que o livro foi escrito um pouco antes disso, mas no caso de citar Bento XVI como simpático à FSSPX não se justifica, (cap. 23) tendo em vista que em "O último testamento" o memorável papa já havia demonstrado arrependimento em ter levantado aquelas excomunhões na inocente esperança de aproximação.

Falando em levantar excomunhão, no mesmo capítulo o autor tentar rebater a acusação de que Lefebvre "ainda" é excomungado. De fato, não é mais, porque morreu, e excomunhão é uma pena dos vivos (é uma pena medicinal, que visa remediar a situação; não é uma condenação ao inferno, coisa que a Igreja não faz). Morreu excomungado, sim, infelizmente.

O livro termina com um artigo do autor sobre a Missa, também criticável, mas paramos por aqui. Se o objetivo era defender a FSSPX, falhou miseravelmente, bem como só fez aumentar a convicção dos críticos de que a situação desse grupo não é nem um pouco defensável.

 



quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Com o objetivo de auxiliar a vivência da Palavra de Deus e a oração em comunidade, em família e pessoalmente, a Seção para os Assuntos Fundamentais da Evangelização no Mundo do Dicastério para a Evangelização disponibilizou um subsídio litúrgico-pastoral. 

O Domingo da Palavra de Deus é uma iniciativa profundamente pastoral com a qual o Papa Francisco quer fazer compreender a importância da referência à Palavra de Deus na vida quotidiana da Igreja e das nossas comunidades, uma Palavra que não se limita a um livro, mas que permanece sempre vivo e se torna um sinal concreto e tangível. Cada realidade local saberá encontrar os modos mais adequados e eficazes para viver plenamente este domingo, permitindo «crescer no povo de Deus uma familiaridade religiosa e assídua com as Sagradas Escrituras» (Aperuit illis, 15). Esta ajuda pastoral pretende ser uma ajuda que queremos oferecer às comunidades paroquiais e a quantos se reúnem para a celebração da Sagrada Eucaristia no domingo, para que este domingo seja vivido intensamente.

S.E.R. Monsenhor Rino Fisichella


Subsídio
Subsídio litúrgico-pastoral em português
- CLIQUE AQUI PARA BAIXAR

O conteúdo:

1. Considerações práticas

2. Propostas pastorais

          · Em comunidade

          ·         Em família

3. Propostas da Lectio Divina

          · Duas propostas sobre João 8,28-42

          · Lectio Divina para jovens sobre Mc 1,14-20 (Evangelho do Terceiro Domingo do Tempo Comum 2024)

4. Uma catequese do Papa Francisco

5. O exemplo do Cardeal Van Thuân

6. Apêndice

          · Adoração Bíblica

          · Esquema da Celebração Eucarística

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Livro
Curso bíblico para leigos
A riqueza da Palavra de Deus - Antigo e Novo Testamento


quarta-feira, 1 de setembro de 2021


 Os pecados contra o Espírito Santo são seis, e chamam-se estes pecados particularmente assim porque se cometem por pura malícia, o que é contrário à bondade que se atribui ao Espírito Santo.

“Em verdade vos digo: “Todos os pecados serão perdoados aos filhos dos homens, mesmo as suas blasfêmias; mas todo o que tiver blasfemado contra o Espírito Santo jamais terá perdão, mas será culpado de um pecado eterno.” (Mc 3, 28-29)

Um pecado contra o Espírito Santo não tem perdão na medida em que o pecador não se arrepende, não quer, ou não acredita, ser perdoado.

A Impenitência final:

Não é difícil de entender este pecado, pois uma pessoa que vem pecando a vida inteira, no final de sua existência continua sendo impenitente e não arrependido de tudo o que fez de mal. É a suprema e final rejeição à Deus. Mesmo estando no fim da vida e sabendo que vai morrer, a pessoa não quer mudar de vida.

Inveja da graça fraterna:

Ocorre quando a pessoa tem inveja da graça que Deus dá a outrem. O invejoso irrita-se por que o seu próximo conseguiu algo de bom e por isso revolta-se contra Deus. É o caso de Caim e Abel. Caim matou Abel por inveja.

Presunção de salvação sem merecimento:

Ocorre quando a pessoa se acha muito virtuosa que pensa que já está no céu e, por isso, por mais que possa pecar, Deus lhe perdoará. Implica num sentimento de orgulho achando de que está salva pelo que já fez na vida.

Negar a verdade conhecida como tal:

Ocorre quando a pessoa se julga “dona da verdade” e por isso não aceita as verdades da fé por puro orgulho.

A obstinação no pecado:

É quem peca não por fraqueza, mas por malícia. Peca não porque simplesmente teve tentação, mas porque AMA pecar.

Desespero de salvação:

Ocorre quando a pessoa já pecou tanto que entra em desespero achando que não há mais salvação para ela. Fica convencida de que não há mais solução e que seu destino é o inferno.


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segunda-feira, 2 de agosto de 2021

 

Jesus Cristo mentiu? 🤔 Parece um absurdo, mas muita gente afirma que sim, direta ou indiretamente, ou por ignorância. Há ainda os que duvidam que Ele existiu ou que é Deus. Se Jesus existiu, é quem disse ser, fez o que fez, disse o que disse, há sérias consequências para nós. Nesta aula vamos analisar os fatos que nos levam a crer na sua existência e tudo o que isso implica.

A ressurreição é o fato histórico que marcar uma iluminação do entendimento dos próprios Apóstolos. A crítica é unânime em atribuir todo o Novo Testamento à experiência histórica da ressurreição de Jesus: o homem que viveu, pregou e fez milagres dizia ser Deus, deu instruções aos seus discípulos e provou tudo com sua ressurreição.

Textos citados:

  1. Jesus Cristo mentiu? - fatos sobre a existência de Jesus, dos Evangelhos e da Igreja.
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terça-feira, 20 de julho de 2021

 Traditiones custodes é o título do Motu proprio do Papa Francisco que restringe a missa antiga, "missa tridentina", .. e revoga todas as disposições anteriores, como o Summorum pontificum, de Bento XVI.


Contextualização e análise com Márcio Carvalho, teólogo, e Emanuel Junior, canonista.
O vídeo foi gravado ao vivo pelo https://www.instagram.com/martyriacursos
 
Entenda o que aconteceu e o que isso influencia em toda a Igreja:
 
O Concílio Vaticano II (1962-65) pediu uma reforma litúrgica, que foi concluída por uma comissão no ano de 1969 e resultou na promulgação de um novo missal, sob Paulo VI.
 
Antes mesmo da publicação do novo missal, no mundo inteiro houve inúmeros abusos e experimentações em matéria litúrgica, constituindo grave escândalo, comprometendo a verdadeira reforma. Muitos grupos (padres, bispos e leigos) solicitaram a permissão de continuar usando o missal precedente, tendo em vista as grandes dificuldades e alterações previstas (e os grandes abusos cometidos a despeito do que ordenava o novo missal). Essas permissões foram concedidas, mas alguns grupos se acirraram na crítica à missa nova e ao Concílio Vaticano II de forma que constituíam um perigo (às vezes um fato) de cisma na Igreja. Em 1988, por exemplo, o bispo Marcel Lefebvre ordenou sem mandato pontifício a 4 bispos, o que leva à pena canônica de excomunhão automática para os bispos sagrantes e os ordenados.
 
Desde então, várias tentativas de reconciliação foram feitas. A exigência da Igreja é muito simples: esses grupos, para estarem em comunhão com a Igreja, devem reconhecer a validade da missa nova e o caráter vinculante do Concílio Vaticano II. Bento XVI, como ato de benevolência, suspendeu a excomunhão dos 4 bispos ordenados (os ordenantes já haviam falecido); mas até hoje, não há nenhum sinal de boa vontade desses grupos em aceitar as duas condições da Igreja.
 
Em 2007, Bento XVI publica o Motu proprio Summorum Pontificum, reafirmando que o o missal antigo nunca foi abolido e garantindo a todo e qualquer padre o direito de usá-lo, onde haja grupo de fiéis interessados, sem necessidade de autorização especial. Agindo assim, o papa desejava dar a conhecer os tesouros da tradição litúrgica a um maior número de pessoas e fazer o mútuo enriquecimento das formas litúrgicas - trazendo para a missa nova coisas já previstas, mas perdidas em meio aos abusos (a piedade eucarística, o silêncio, o canto gregoriano, o latim, enfim, a sacralidade).
 
O gesto de Bento XVI confirmou em muitos lugares o desejo dos fiéis de terem celebrações dignas, sem abusos, "sem excentricidades" (Papa Francisco). Mas, infelizmente, aquele outro intuito - de reconciliar os grupos cismáticos - não foi atingido; continuaram a negar a autoridade do Concílio Vaticano II e o valor do novo missal.
 
Livro: A reforma litúrgica de Bento XVI
passo a passo para a comunidade
O Papa Francisco, consultando os bispos do mundo inteiro, percebeu que esses grupos cismáticos arrastavam cada vez mais pessoas para o cisma, para a negação da autoridade da Igreja. Como ato extremo, publica em 16/07/2021 o Motu proprio Traditiones custodes, revogando o Summorum pontificum e voltando à estaca anterior: agora é necessário autorização especial do bispo para o uso do missal antigo e outras providências que, na prática, extingue a possibilidade de que haja crescimento, mesmo em comunhão com o bispo, de grupos que celebrem a forma antiga da missa romana.
 
De positivo, enxergamos que o documento afirma a necessidade de comunhão com o bispo para realização de qualquer atividade pastoral, sobretudo litúrgica. Na carta ao bispos, que acompanha o Motu proprio, o Papa Francisco termina chamando a atenção dos bispos para que vigiem que as celebrações litúrgicas sigam estritamente o que manda o missal novo, "sem excentricidades e com decoro", pois a maioria das pessoas que procurava a missa antiga é por não encontrar tal decoro e dignidade litúrgica em suas comunidades paroquiais.
 
A lei foi dura com os fiéis que manifestavam predileção pela forma antiga da missa. Por conta de uma minoria que instrumentalizou ideologicamente o uso antigo, toda a Igreja perde uma rica tradição litúrgica.
 
Como lei eclesiástica, este Motu proprio pode vir a ser alterado ou revogado por outro. Por enquanto, resta o desejo manifestado por Bento XVI de que a reforma litúrgica desejada pelo Concílio Vaticano II seja realmente implantada, pela obediência às normas litúrgicas, pela piedade e decoro das celebrações, pela fidelidade à Tradição da Igreja. 

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sexta-feira, 30 de abril de 2021

 Apresentamos este texto de Dom Estevão Bettencourt, monge beneditino, sobre a Inquisição. É comum escutar qualquer um, de modo preconceituoso e totalmente desprovido de fundamentação histórica científica, referir-se à Idade Média e à Inquisição para condenar e difamar a Igreja. Não devemos ter medo da verdade nem esconder os erros históricos da Igreja de Cristo; mas também não devemos aceitar a difamação maldosa e irresponsável, que distorce os fatos de modo injusto. Eis alguns esclarecimentos sobre a Inquisição. Apesar do artigo de Dom Estêvão ser um todo, tomamos a liberdade de dividi-lo em três partes, por questões práticas: (1) A Inquisição, (2) A Inquisição Espanhola e (3) A Inquisição Portuguesa. Vale a pena ler as três partes. Nunca mais você ficará calado quando alguém quiser falar mal da Igreja citando a Inquisição! (fonte: blogmissaoatos)

A Inquisição

A Inquisição não foi criada de uma só vez, nem procedeu do mesmo modo no decorrer dos séculos. Por isto distinguem-se:

1) A lnquisição Medieval, voltada contra as heresias cátara e valdense nos séculos XII-XIII e contra falsos misticismos nos séculos XIV-XV;

2) A lnquisição Espanhola, instituída em 1.478 por iniciativa dos reis Fernando e Isabel; visando principalmente aos judeus e muçulmanos, tornou-se poderoso instrumento do absolutismo dos monarcas espanhóis até o século XIX, a ponto de quase não poder ser considerada instituição eclesiástica (não raro a lnquisição Espanhola procedeu independentemente de Roma, resistindo à intervenção da Santa Sé, porque o rei de Espanha a esta se opunha);

3) A lnquisição Romana (também dita Santo Ofício) instituída em 1.542 pelo Papa Paulo III, em vista do surto do protestantismo.

Apesar das modalidades próprias, a Inquisição Medieval e a Romana foram movidas por princípios e mentalidade características. Passamos a examinar essa mentalidade e os procedimentos de tal instituição, principalmente como nos são transmitidos por documentos medievais.

Antecedentes da Inquisição contra os hereges a Igreja antiga aplicava penas espirituais, principalmente a excomunhão; não pensava em usar a força bruta. Quando, porém, o Imperador romano se tornou cristão, a situação dos hereges mudou. Sendo o Cristianismo religião de Estado, os Césares quiseram continuar a exercer para com este os direitos dos imperadores romanos (Pontifices maximi) em relação à religião pagã; quando arianos, perseguiam os católicos; quando católicos, perseguiam os hereges. A heresia era tida como um crime civil, e todo atentado contra a religião oficial como atentado contra a sociedade; não se deveria ser mais clemente para com um crime cometido contra a Majestade Divina do que para com os crimes de lesa-majestade humana.

As penas aplicadas, do século IV em diante, eram geralmente a proibição de fazer testamento, a confiscação dos bens, o exílio. A pena de morte foi infligida, pelo poder civil, aos maniqueus e aos donatistas; aliás, já Diocleciano em 300 parece ter decretado a pena de morte pelo fogo para os maniqueus, que eram contrários à matéria e aos bens materiais.

Agostinho, de início, rejeitava qualquer pena temporal para os hereges. Vendo, porém, os danos causados pelos donatistas (circumcelliones) propugnava os açoites e o exílio, não a tortura nem a pena de morte. Já que o Estado pune o adultério, argumentava, deve punir também a heresia, pois não é pecado mais leve a alma não conservar fidelidade (fides, fé) a Deus do que a mulher trair o marido (epist. 185, n. 21, a Bonifácio). Afirmava, porém, que os infiéis não devem ser obrigados a abraçar a fé, mas os hereges devem ser punidos e obrigados ao menos a ouvir a verdade.

As sentenças dos Padres da lgreja sobre a pena de morte dos hereges variavam. São João Crisóstomo (+ 407) Bispo de Constantinopla, baseando-se na parábola do joio e do trigo, considerava a execução de um herege como culpa gravíssima; não excluía, porém, medidas repressivas. A execução de Prisciliano, prescrita por Máximo Imperador em Tréveris (385) foi geralmente condenada pelos porta-vozes da lgreja, principalmente por São Martinho e Santo Ambrósio.

Das penas infligidas pelo Estado aos hereges não constava a prisão; esta parece ter tido origem nos mosteiros, donde foi transferida para a vida civil. Os reis merovíngios e carolíngios castigavam crimes eclesiásticos com penas civis assim como aplicavam penas eclesiásticas a crimes civis.

Chegamos assim ao fim do primeiro milênio. A Inquisição teria origem pouco depois.

 

As origens da lnquisição

 

No antigo Direito Romano, o juiz não empreendia a procura dos criminosos; só procedia ao julgamento depois que Ihe fosse apresentada a denúncia. Até à Alta ldade Média, o mesmo se deu na Igreja; a autoridade eclesiástica não procedia contra os delitos se estes não Ihe fossem previamente apresentados. No decorrer dos tempos, porém, esta praxe mostrou-se insuficiente. Além disto, no séc. XI apareceu na Europa nova forma de delito religioso, isto é, uma heresia fanática e revolucionária, como não houvera até então: O catarismo (do grego katharós, puro) ou o movimento dos albigenses (de Albi, cidade da França meridional, onde os hereges tinham seu foco principal).

Considerando a matéria por si os cátaros rejeitavam não somente a face visível da lgreja, mas também instituições básicas da vida civil — o matrimônio, a autoridade governamental, o serviço militar — e enalteciam o suicídio. Destarte constituíam grave ameaça não somente para a fé cristã, mas também para a vida pública.

Em bandos fanáticos, às vezes apoiados por nobres senhores, os cátaros provocavam tumultos, ataques às igrejas etc., por todo o decorrer do séc. XI até 1.150 aproximadamente, na França, na Alemanha, nos Países-Baixos… O povo, com a sua espontaneidade, e a autoridade civil, se encarregavam de os reprimir com violência: Não raro o poder régio da França, por iniciativa própria e a contra-gosto dos bispos, condenou à morte pregadores albigenses, visto que solapavam os fundamentos da ordem constituída.

Foi o que se deu, por exemplo, em Orleães (1.017) onde o Rei Roberto, informado de um surto de heresia na cidade, compareceu pessoalmente, procedeu ao exame dos hereges e os mandou lançar ao fogo; a causa da civilização e da ordem pública se identificava com a fé! Entrementes a autoridade eclesiástica limitava-se a impor penas espirituais (excomunhão, interdito, etc.) aos albigenses, pois até então nenhuma das muitas heresias conhecidas havia sido combatida por violência física; Santo Agostinho (+ 430) e antigos bispos, São Bernardo (+ 1.154), S. Norberto (+ 1.134) e outros mestres medievais eram contrários ao uso da forma (“Sejam os hereges conquistados não pelas armas, mas pelos argumentos”, admoestava São Bernardo, In Cant, serm. 64).

Não são casos isolados os seguintes:

Em 1.144 na cidade de Lião o povo quis punir violentamente um grupo de inovadores que aí se introduzira; o clero, porém, os salvou, desejando a sua conversão, e não a sua morte.

Em 1.077 um herege professou seus erros diante do bispo de Cambraia; a multidão de populares lançou-se então sobre ele, sem esperar o julgamento, encerrando-o numa cabana, à qual atearam o fogo!

Contudo, em meados do século XII, a aparente indiferença do clero se mostrou insustentável: Os magistrados e o povo exigiam colaboração mais direta na repressão do catarismo.

Muito significativo, por exemplo, é o episódio seguinte: O Papa Alexandre III, em 1.162, escreveu ao Arcebispo de Reims e ao Conde de Flândria, em cujo território os cátaros provocavam desordens: “Mais vale absolver culpados do que, por excessiva severidade, atacar a vida de inocentes… A mansidão mais convém aos homens da Igreja do que a dureza… Não queiras ser justo demais (noli nimium esse iustus)”. Informado desta admoestação pontifícia, o Rei Luís VII de França, irmão do referido arcebispo, enviou ao Papa um documento em que o descontentamento e o respeito se traduziam simultaneamente: “Que vossa prudência dê atenção toda particular a essa peste (a heresia) e a suprima antes que possa crescer. Suplico-vos para bem da fé cristã, concedei todos os poderes neste Campo ao Arcebispo (do Reims) ele destruirá os que assim se insurgem contra Deus, sua justa severidade será louvada por todos aqueles que nesta terra são animados de verdadeira piedade. Se procederdes de outro modo, as queixas não se acalmarão facilmente e desencadeareis contra a Igreja Romana as violentas recriminações da opinião pública”. (Martene, Amplissima Collectio II 638 s)

As conseqüências deste intercâmbio epistolar não se fizeram esperar muito: O Concílio Regional de Tours em 1.163, tomando medidas repressivas contra a heresia, mandava inquirir (procurar) os seus agrupamentos secretos. Por fim, a assembléia de Verona (Itália) à qual compareceram o Papa Lúcio III, o Imperador Frederico Barba-Roxa, numerosos bispos, prelados e príncipes, baixou, em 1.184, um decreto de grande importância: O poder eclesiástico e o civil, que até então haviam agido independentemente um do outro (aquele impondo penas espirituais, este recorrendo à força física) deveriam combinar seus esforços em vista de mais eficientes resultados: Os hereges seriam doravante não somente punidos, mas também procurados (inquiridos); cada bispo inspecionaria, por si ou por pessoas de confiança uma ou duas vezes por ano, as paróquias suspeitas; os condes, barões e as demais autoridades civis os deveriam ajudar sob pena de perder seus cargos ou ver o interdito lançado sobre as suas terras; os hereges depreendidos ou abjurariam seus erros ou seriam entregues ao braço secular, que lhes imporia a sanção devida.

Assim era instituída a chamada “Inquisição episcopal”, a qual, como mostram os precedentes, atendia a necessidades reais e a clamores exigentes tanto dos monarcas e magistrados civis como do povo cristão; independentemente da autoridade da lgreja, já estava sendo praticada a repressão física das heresias. No decorrer do tempo, porém, percebeu-se que a inquisição episcopal ainda era insuficiente para deter os inovadores; alguns bispos, principalmente no sul da França, eram tolerantes; além disto, tinham seu raio de ação limitado às respectivas dioceses, o que lhes vedava uma campanha eficiente. À vista disto, os Papas, já em fins do século XII, começaram a nomear legados especiais, munidos de plenos poderes para proceder contra a heresia onde quer que fosse.

Destarte surgiu a “Inquisição Pontifícia” ou “legatina”, que a princípio ainda funcionava ao lado da episcopal, aos poucos, porém, a tornou desnecessária. A Inquisição papal recebeu seu caráter definitivo e sua organização básica em 1.233, quando o Papa Gregório IX confiou aos dominicanos a missão de Inquisidores; havia doravante, para cada nação ou distrito inquisitorial, um Inquisidor-Mor, que trabalharia com a assistência de numerosos oficiais subalternos (consultores, jurados, notários…) em geral independentemente do bispo em cuja diocese estivesse instalado. As normas do procedimento inquisitorial foram sendo sucessivamente ditadas por Bulas pontifícias e decisões de Concílios.

Entrementes a autoridade civil continuava a agir, com zelo surpreendente contra os sectários. Chama a atenção, por exemplo, a conduta do Imperador Frederico II, um dos mais perigosos adversários que o Papado teve no séc. XIII. Em 1.220 este monarca exigiu de todos os oficiais de seu governo prometessem expulsar de suas terras os hereges reconhecidos pela lgreja; declarou a heresia crime de lesa-majestade, sujeito à pena de morte e mandou dar busca aos hereges. Em 1.224 publicou decreto mais severo do que qualquer das leis citadas pelos reis ou Papas anteriores: As autoridades civis da Lombardia deveriam não somente enviar ao fogo quem tivesse sido comprovado herege pelo bispo, mas ainda cortar a língua aos sectários a quem, por razões particulares, se houvesse conservado a vida. E possível que Frederico II visasse a interesses próprios na campanha contra a heresia; os bens confiscados redundariam em proveito da coroa.

Não menos típica é a atitude de Henrique II, rei da Inglaterra: Tendo entrado em luta contra o arcebispo Tomás Becket, primaz de Cantuária, e o Papa Alexandre III, foi excomungado. Não obstante, mostrou-se um dos mais ardorosos repressores da heresia no seu reino: Em 1185, por exemplo, alguns hereges de Flandres tendo-se refugiado na Inglaterra, o monarca mandou prendê-los, marcá-los com ferro em brasa na testa e expô-los, assim desfigurados, ao povo; além disto, proibiu aos seus súditos lhes dessem asilo ou Ihes prestassem o mínimo serviço.

Estes dois episódios, que não são únicos no seu gênero, bem mostram que o proceder violento contra os hereges, longe de ter sido sempre inspirado pela suprema autoridade da Igreja, foi não raro desencadeado independentemente desta, por poderes que estavam em conflito com a própria lgreja. A inquisição, em toda a sua história, se ressentiu dessa usurpação de direitos ou da demasiada ingerência das autoridades civis em questões que dependem primeiramente do foro eclesiástico.

Em síntese, pode-se dizer o seguinte:

1) A Igreja, nos seus onze primeiros séculos, não aplicava penas temporais aos hereges, mas recorria às espirituais (excomunhão, interdito, suspensão…). Somente no século XII passou a submeter os hereges a punições corporais. E por quê?

2) As heresias que surgiram no século XI (as dos cátaros e valdenses), deixavam de ser problemas de escola ou academia, para ser movimentos sociais anarquistas, que contrariavam a ordem vigente e convulsionavam as massas com incursões e saques. Assim tornavam-se um perigo público.

3) O Cristianismo era patrimônio da sociedade, à semelhança da prática e da família hoje. Aparecia como o vínculo necessário entre os cidadãos ou o grande bem dos povos; por conseguinte, as heresias, especialmente as turbulentas, eram tidas como crimes sociais de excepcional gravidade.

4) Não é, pois, de estranhar que as duas autoridades – a civil e a eclesiástica tenham finalmente entrado em acordo para aplicar aos hereges as penas reservadas pela legislação da época aos grandes delitos.

5) A lgreja foi levada a isto, deixando sua antiga posição, pela insistência que sobre ela exerceram não somente monarcas hostis, como Henrique II da Inglaterra e Frederico Barba-roxa da Alemanha, mas também reis piedosos e fiéis ao Papa, como Luís VII da França.

6) De resto, a Inquisição foi praticada pela autoridade civil mesmo antes de estar regulamentada por disposições eclesiásticas. Muitas vezes o poder civil se sobrepôs ao eclesiástico na procura de seus adversários políticos.

7) Segundo as categorias da época, a Inquisição era um progresso para melhor em relação ao antigo estado de coisas, em que as populações faziam justiça pelas próprias mãos. E de notar que nenhum dos Santos medievais (nem mesmo S. Francisco de Assis, tido como símbolo da mansidão) levantou a voz contra a Inquisição, embora soubessem protestar contra o que Ihes parecia destoante do ideal na lgreja.

 

Procedimentos da Inquisição

 

As táticas utilizadas pelos Inquisidores são-nos hoje conhecidas, pois ainda se conservaram manuais de instruções práticas entregues ao uso dos referidos oficiais. Quem lê tais textos, verifica que as autoridades visavam a fazer dos juizes inquisitoriais autênticos representantes da justiça e da causa do bem. Bernardo de Guy (séc. XIV) por exemplo, tido como um dos mais severos inquisidores, dava as seguintes normas aos seus colegas: “O Inquisidor deve ser diligente e fervoroso no seu zelo pela verdade religiosa, pela salvação das almas e pela extirpação das heresias. Em meio às dificuldades permanecerá calmo, nunca cederá à cólera nem à indignação… Nos casos duvidosos, seja circunspeto, não dê fácil crédito ao que parece provável e muitas vezes não é verdade; também não rejeite obstinadamente a opinião contrária, pois o que parece improvável freqüentemente acaba por ser comprovado como verdade… O amor da verdade e a piedade que devem residir no coração de um juiz, brilhem em seus olhos, a fim de que suas decisões jamais possam parecer ditadas pela cupidez e a crueldade.” (Prática VI p… ed. Douis 232 s). Já que mais de uma vez se encontram instruções tais nos arquivos da Inquisição, não se poderia crer que o apregoado ideal do Juiz Inquisidor, ao mesmo tempo eqüitativo e bom, se realizou com mais freqüência do que comumente se pensa? Não se deve esquecer, porém (como adiante mais explicitamente se dirá) que as categorias pelas quais se afirmava a justiça na Idade Média, não eram exatamente as da época moderna…

Além disto, levar-se-á em conta que o papel do juiz, sempre difícil, era particularmente árduo nos casos da Inquisição: O povo e as autoridades civis estavam profundamente interessados no desfecho dos processos; pelo que, não raro exerciam pressão para obter a sentença mais favorável a caprichos ou a interesses temporais; às vezes, a população obcecada aguardava ansiosamente o dia em que o veredictum do juiz entregaria ao braço secular os hereges comprovados. Em tais circunstâncias não era fácil aos juízes manter a serenidade desejável. Dentre as táticas adotadas pelos Inquisidores, merecem particular atenção a tortura e a entrega ao poder secular (pena de morte).

A tortura estava em uso entre os gregos e romanos pré-cristãos que quisessem obrigar um escravo a confessar seu delito. Certos povos germânicos também a praticavam. Em 866, porém, dirigindo-se aos búlgaros, o Papa Nicolau I a condenou formalmente. Não obstante, a tortura foi de novo adotada pelos tribunais civis da Idade Média nos inícios do séc. XII, dado o renascimento do Direito Romano. Nos processos inquisitoriais, o Papa Inocêncio IV acabou por introduzi-la em 1.252, com a cláusula: “Não haja mutilação de membros nem perigo de morte para o réu”. O Pontífice, permitindo tal praxe, dizia conformar-se aos costumes vigentes em seu tempo (Bullarum amplissima collectio II 326).

Os Papas subseqüentes, assim como os Manuais dos lnquisidores, procuraram restringir a aplicação da tortura; só seria lícita depois de esgotados os outros recursos para investigar a culpa e apenas nos casos em que já houvesse meia-prova do delito ou, como dizia a linguagem técnica, dois “índices veementes” deste, a saber: O depoimento de testemunhas fidedignas, de um lado e, de outro lado, a má fama, os maus costumes ou tentativas de fuga do réu. O Concílio de Viena (França) em 1.311 mandou outrossim que os Inquisidores só recorressem a tortura depois que uma comissão julgadora e o bispo diocesano a houvessem aprovado para cada caso em particular. Apesar de tudo que a tortura apresenta de horroroso, ela tem sido conciliada com a mentalidade do mundo moderno … ainda estava oficialmente em uso na França do séc. XVIII e tem sido aplicada até mesmo em nossos dias… Quanto à pena de morte, reconhecida pelo antigo Direito Romano, estava em vigor na jurisdição civil da Idade Média. Sabe-se, porém, que as autoridades eclesiásticas eram contrárias à sua aplicação em casos de lesa-religião. Contudo, após o surto do catarismo (séc. XII) alguns canonistas começaram a julgá-la oportuna, apelando para o exemplo do Imperador Justiniano, que no Séc. VI a infligira aos maniqueus. Em 1.199 o Papa Inocêncio III dirigia-se aos magistrados de Viterbo nos seguintes termos: “Conforme a lei civil, os réus de lesa-majestade são punidos com a pena capital e seus bens são confiscados. Com muito mais razão, portanto, aqueles que, desertando a fé, ofendem a Jesus, o Filho do Senhor Deus, devem ser separados da comunhão cristã e despojados de seus bens, pois muito mais grave é ofender a Majestade Divina do que lesar a majestade humana”. (Epist. 2,1). Como se vê, o Sumo Pontífice com essas palavras desejava apenas justificar a excomunhão e a confiscação de bens dos hereges; estabelecia, porém, uma comparação que daria ocasião a nova praxe… O Imperador Frederico II soube deduzir-lhe as últimas conseqüências: Tendo lembrado numa Constituição de 1.220 a frase final de Inocêncio III, o monarca, em 1.224, decretava francamente para a Lombardia a pena de morte contra os hereges e, já que o Direito antigo assinalava o fogo em tais casos, o Imperador os condenava a ser queimados vivos. Em 1.230 o dominicano Guala, tendo subido à cátedra episcopal de Bréscia (Itália), fez aplicação da lei imperial na sua diocese. Por fim, o Papa Gregório IX, que tinha intercâmbio freqüente com Guala, adotou o modo de ver deste bispo: Transcreveu em 1230 ou 1231 a constituição imperial de 1.224 para o Registro das Cartas Pontifícias e em breve editou uma lei pela qual mandava que os hereges reconhecidos pela Inquisição fossem abandonados ao poder civil, para receber o devido castigo, castigo que, segundo a legislação de Frederico II, seria a morte pelo fogo. Os teólogos e canonistas da época se empenharam por justificar a nova praxe; eis como fazia S. Tomás de Aquino: “É muito mais grave corromper a fé, que é a vida da alma, do que falsificar a moeda que é um meio de prover à vida temporal Se, pois, os falsificadores de moedas e outros malfeitores são, a bom direito, condenados à morte pelos príncipes seculares, com muito mais razão os hereges, desde que sejam comprovados tais, podem não somente ser excomungados, mas também em toda justiça ser condenados à morte” (Summa Theologiae II/II 11,3c).

A argumentação do Santo Doutor procede do princípio (sem dúvida, autêntico em si) de que a vida da alma mais vale do que a do corpo; se, pois, alguém pela heresia ameaça a vida espiritual do próximo, comete maior mal do que quem assalta a vida corporal; o bem comum então exige a remoção do grave perigo (veja-se também S. Teol. II/II 11,4c).

Contudo as execuções capitais não foram tão numerosas quanto se poderia crer. Infelizmente faltam-nos estatísticas completas sobre o assunto; consta, porém, que o tribunal de Pamiers, de 1.303 a 1.324, pronunciou 75 sentenças condenatórias, das quais apenas cinco mandavam entregar o réu ao poder civil (o que equivalia à morte); o lnquisidor Bernardo de Guy, em Tolosa, de 1.308 a 1.323, proferiu 930 sentenças, das quais 42 eram capitais; no primeiro caso, a proporção é de 1/15; no segundo caso, de 1/22. Não se poderia negar, porém, que houve injustiças e abusos da autoridade por parte dos juízes inquisitoriais. Tais males se devem a conduta de pessoas que, em virtude da fraqueza humana, não foram sempre fiéis cumpridoras da sua missão.

Os Inquisidores trabalhavam a distâncias mais ou menos consideráveis de Roma, numa época em que, dada a precariedade de correios e comunicações, não podiam ser assiduamente controlados pela suprema autoridade da lgreja. Esta, porém, não deixava de os censurar devidamente, quando recebia notícia de algum desmando verificado em tal ou tal região. Famoso, por exemplo, é o caso de Roberto, o Bugro, Inquisidor-Mor de França no século XIII.

O Papa Gregório IX a princípio muito o felicitava por seu zelo. Roberto, porém, tendo aderido outrora à heresia, mostrava-se excessivamente violento na repressão da mesma. Informado dos desmandos praticados pelo lnquisidor, o Papa o destituiu de suas funções e o mandou encarcerar. Inocêncio IV, o mesmo Pontífice que permitiu a tortura nos processos da inquisição, e Alexandre IV, respectivamente em 1.246 e 1.256, mandaram aos Padres Provinciais e Gerais dos Dominicanos e Franciscanos, depusessem os lnquisidores de sua Ordem que se tornassem notórios por sua crueldade.

O Papa Bonifácio VIII (1.294-1.303) famoso pela tenacidade e intransigência de suas atitudes, foi um dos que mais reprimiram os excessos dos inquisidores, mandando examinar, ou simplesmente anulando, sentenças proferidas por estes. O Concílio regional de Narbona (França) em 1.243 promulgou 29 artigos que visavam a impedir abusos do poder. Entre outras normas, prescrevia aos lnquisidores só proferissem sentença condenatória nos casos em que, com segurança, tivessem apurado alguma falta, “pois mais vale deixar um culpado impune do que condenar um inocente.” (cânon 23) Dirigindo-se ao Imperador Frederico II, pioneiro dos métodos inquisitoriais, o Papa Gregório IX aos 15 de julho de 1.233 lhe lembrava que “a arma manejada pelo Imperador não devia servir para satisfazer aos seus rancores pessoais, com grande escândalo das populações, com detrimento da verdade e da dignidade imperial.” (ep. saec. XIII 538-550).

 

Avaliação

 

Procuremos agora formular um juízo sobre a Inquisição Medieval. Não é necessário ao católico justificar tudo que, em nome desta, foi feito. É preciso, porém, que se entendam as intenções e a mentalidade que moveram a autoridade eclesiástica a instituir a Inquisição. Estas intenções, dentro do quadro de pensamento da Idade Média, eram legítimas e, diríamos até, deviam parecer aos medievais inspiradas por santo zelo. Podem-se reduzir a quatro os fatores que influíram decisivamente no surto e no andamento da Inquisição:

1) Os medievais tinham profunda consciência do valor da alma e dos bens espirituais. Tão grande era o amor à fé (esteio da vida espiritual) que se considerava a deturpação da fé pela heresia como um dos maiores crimes que o homem pudesse cometer (notem-se os textos de São Tomás e do Imperador Frederico II atrás citados); essa fé era tão viva e espontânea que dificilmente se admitiria viesse alguém a negar com boas intenções um só dos artigos do Credo.

2) As categorias de justiça na Idade Média eram um tanto diferentes das nossas: Havia muito mais espontaneidade (que às vezes equivalia a rudez) na defesa dos direitos. Pode-se dizer que os medievais, no caso, seguiam mais o rigor da lógica do que a ternura dos sentimentos; o raciocínio abstrato e rígido neles prevalecia por vezes sobre o senso psicológico (nos tempos atuais verifica-se quase o contrário: Muito se apela para a psicologia e o sentimento, pouco se segue a lógica; os homens modernos não acreditam muito em princípios perenes; tendem a tudo julgar segundo critérios relativos e relativistas, critérios de moda e de preferência subjetiva).

3) A intervenção do poder secular exerceu profunda influência no desenvolvimento da inquisição. As autoridades civis anteciparam-se na aplicação da forma física e da pena de morte aos hereges; instigaram a autoridade eclesiástica para que agisse energicamente; provocaram certos abusos motivados pela cobiça de vantagens políticas ou materiais. De resto, o poder espiritual e o temporal na Idade Média estavam, ao menos em tese, tão unidos entre si que lhes parecia normal, recorressem um ao outro em tudo que dissesse respeito ao bem comum. A partir dos inícios do Séc. XIV a lnquisição foi sendo mais explorada pelos monarcas, que dela se serviam para promover seus interesses particulares, subtraindo-a às diretivas do poder eclesiástico, até mesmo encaminhando-a contra este; é o que aparece claramente no Processo Inquisitório dos Templários, movido por Filipe o Belo da França (1.285-1.314) à revelia do Papa Clemente V. (cf. capítulo 25)

4) Não se negará a fraqueza humana de Inquisidores e de oficiais seus colaboradores. Não seria Iícito, porém, dizer que a suprema autoridade da Igreja tenha pactuado com esses fatos de fraqueza; ao contrário, tem-se o testemunho de numerosos protestos enviados pelos Papas e Concílios a tais ou tais oficiais, contra tais leis e tais atitudes inquisitoriais. As declarações oficiais da Igreja concernentes à Inquisição se enquadram bem dentro das categorias da justiça medieval; a injustiça se verificou na execução concreta das leis. Diz-se, de resto, que cada época da história apresenta ao observador um enigma próprio na Antigüidade remota, o que surpreende são os desumanos procedimentos de guerra. No Império Romano, é a mentalidade dos cidadãos, que não conheciam o mundo sem o seu Império (oikouméne — orbe habitado — Imperium

) nem concebiam o Império sem a escravatura. Na época contemporânea, é o relativismo ou ceticismo público; é a utilização dos requintes da técnica para “lavar o crânio”, desfazer a personalidade, fomentar o ódio e a paixão. Não seria então possível que os medievais, com boa fé na consciência, tenham recorrido a medidas repressivas do mal que o homem moderno, com razão, julga demasiado violentas? Quanto à Inquisição Romana, instituída no Séc. XVI, era herdeira das leis e da mentalidade da Inquisição Medieval. No tocante à Inquisição Espanhola, sabe-se que agiu mais por influência dos monarcas da Espanha do que sob a responsabilidade da suprema autoridade da Igreja.


Inquisição Espanhola


Os reis Fernando e Isabel, visando a plena unificação de seus domínios, tinham consciência de que existia uma instituição eclesiástica, a Inquisição, oriunda na Idade Média com o fim de reprimir um perigo religioso e civil dos séculos XI/XII (a heresia cátara ou albigense); a este perigo pareciam assemelhar-se as atividades dos marranos (judeus) e mouriscos (árabes) na Espanha do século XV.

1) A Inquisição Medieval, que nunca fora muito ativa na península ibérica, achava-se a mais ou menos adormecida na segunda metade do Séc. XV Aconteceu, porém, que durante a Semana Santa de 1.478 foi descoberta em Sevilha uma conspiração de marranos, a qual muito exasperou o público. Então lembrou-se o rei Fernando de pedir ao Papa, reavivasse na Espanha a antiga Inquisição, e a reavivasse sobre novas bases, mais promissoras para o reino, confiando sua orientação ao monarca espanhol. Sixto IV, assim solicitado, resolveu finalmente atender ao pedido de Fernando (ao qual, depois de hesitar algum tempo, se associara Isabel). Enviou, pois, aos reis da Espanha o Breve de 19 de novembro de 1.478, pelo qual “conferia plenos poderes a Fernando e Isabel para nomearem dois ou três Inquisidores, arcebispos, bispos ou outros dignitários eclesiásticos, recomendáveis por sua prudência e suas virtudes, sacerdotes seculares ou regulares, de quarenta anos de idade ao menos, e de costumes irrepreensíveis, mestres ou bacharéis em Teologia, doutores ou licenciados em Direito Canônico, os quais deveriam passar de maneira satisfatória por um exame especial. Tais lnquisidores ficariam encarregados de proceder contra os judeus batizados reincidentes no judaísmo e contra todos os demais culpados de apostasia. o Papa delegava a esses oficiais eclesiásticos a jurisdição necessária para instaurar os processos dos acusados conforme o Direito e o costume; além disto, autorizava os soberanos espanhóis a destituir tais Inquisidores e nomear outros em seu lugar, caso isto fosse oportuno”. (L.Pastor, Histoire des Papes IV 370) Note-se bem que, conforme este edito, a lnquisição só estenderia sua ação a cristãos batizados, não a judeus que jamais houvessem pertencido a lgreja; a instituição era, pois, concebida como órgão promotor de disciplina entre os filhos da Igreja, não como instrumento de intolerância em relação às crenças não-cristãs.

 

Procedimentos da Inquisição Espanhola


Apoiados na Licença Pontifícia, os reis da Espanha aos 17 de setembro de 1.480 nomearam lnquisidores, com sede em Sevilha, os dois dominicanos Miguel Morillo e Juan Martins, dando-lhes como assessores dois sacerdotes seculares. os monarcas.promulgaram também um compêndio de “Instruções”, enviado a todos os tribunais da Espanha, constituindo como que um código da Inquisição, a qual assim se tornava uma espécie de órgão do Estado civil. Os Inquisidores entraram logo em ação, procedendo geralmente com grande energia. Parecia que a lnquisição estava a serviço não da Religião propriamente, mas dos soberanos espanhóis, os quais procuravam atingir criminosos mesmo de categoria meramente política. Em breve, porém, fizeram-se ouvir em Roma queixas diversas contra a severidade dos Inquisidores. Sixto IV então escreveu sucessivas cartas aos monarcas da Espanha, mostrando-lhes profundo descontentamento por quanto acontecia em seu reino e baixando instruções de moderação para os juízes tanto civis como eclesiásticos. Merece especial destaque neste particular o Breve de 2 de agosto de 1.482, que é o Papa, depois de promulgar certas regras coibitivas do poder dos Inquisidores, concluía com as seguintes palavras: “Visto que somente a caridade nos toma semelhantes a Deus, rogamos e exortamos o Rei e a Rainha, pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo, a fim de que imitem Aquele de quem é característico ter sempre compaixão e perdão. Queiram, portanto, mostrar-se indulgentes para com os seus súditos da cidade e da diocese de Sevilha que confessam o erro e imploram a misericórdia.” Contudo, apesar das freqüentes admoestações pontifícias, a Inquisição Espanhola ia-se tornando mais e mais um órgão poderoso de influência e atividade do monarca nacional. Para comprovar isto, basta lembrar o seguinte: A Inquisição no território espanhol ficou sendo instituto permanente durante três séculos a fio. Nisto diferia bem da Inquisição Medieval, a qual foi sempre intermitente, tendo em vista determinados erros oriundos em tal ou tal localidade. A manutenção permanente de um tribunal inquisitório impunha avultadas despesas, que somente o Estado podia tomar a seu cargo; foi o que se deu na Espanha: Os reis atribuíam a si todas as rendas materiais da Inquisição (impostos, multas, bens confiscados) e pagavam as respectivas despesas; conseqüentemente alguns historiadores, referindo-se à Inquisição Espanhola, denominaram-na “Inquisição Régia”.

 

Emancipada de Roma


A fim de completar o quadro até aqui traçado, passemos a mais um pormenor característico do mesmo. Os reis Fernando e Isabel visavam a corroborar a Inquisição, emancipando-a do controle mesmo de Roma… Conceberam então a idéia de dar à instituição um chefe único e plenipotenciário — o Inquisidor-Mor — o qual julgaria na Espanha mesma os apelos dirigidos a Roma. Para este cargo, propuseram à Santa Sé um religioso dominicano, Tomás de Torquemada (Turrecremata, em latim) o qual em outubro de 1483 foi realmente nomeado Inquisidor-Mor para todos os territórios de Fernando e Isabel. Procedendo à nomeação escrevia o Papa Sixto IV a Torquemada: “Os nossos caríssimos filhos em Cristo, o rei e a rainha de Castela e Leão, nos suplicaram para que te designássemos como Inquisidor do mal da heresia nos seus reinos de Aragão e Valença, assim como no principado de Catalunha” (Bulla.ord. Praedicatorum / 622). O gesto de Sixto IV só se pode explicar por boa fé e confiança. O ato era, na verdade, pouco prudente… Com efeito; a concessão benignamente feita aos monarcas seria pretexto para novos e novos avanços destes: Os sucessores de Torquemada no cargo de Inquisidor-Mor já não foram nomeados pelo Papa, mas pelos soberanos espanhóis (de acordo com critérios nem sempre louváveis).

Para Torquemada e sucessores, foi obtido da Santa Sé o direito de nomearem os lnquisidores regionais, subordinados ao Inquisidor-Mor. Mais ainda: Fernando e Isabel criaram o chamado “Conselho Régio da Inquisição”, comissão de consultores nomeados pelo poder civil e destinados como que a controlar os processos da Inquisição; gozavam de voto deliberativo em questões de Direito civil, e de voto consultivo em temas de Direito Canônico. Uma das expressões mais típicas da autonomia arrogante do Santo ofício espanhol é o famoso processo que os Inquisidores moveram contra o arcebispo primaz da Espanha, Bartolomeu Carranza, de Toledo. Sem descer aos pormenores do acontecimento, notaremos aqui apenas que durante dezoito anos contínuos a Inquisição Espanhola perseguiu o venerável prelado, opondo-se a legados papais, ao Concílio Ecumênico de Trento e ao próprio Papa, em meados do Séc. XVI. Frisando ainda um particular, lembraremos que o rei Carlos III (1.759-1.788) constituiu outra figura significativa do absolutismo régio no setor que vimos estudando. Colocou-se peremptoriamente entre a Santa Sé e a Inquisição, proibindo a esta que executasse alguma ordem de Roma sem licença prévia do Conselho de Castela, ainda que se tratasse apenas de proscrição de livros. O Inquisidor-Mor, tendo acolhido um processo sem permissão do rei, foi logo banido para localidade situada a doze horas de Madrid; só conseguiu voltar após apresentar desculpas ao rei, que as aceitou, declarando: “O Inquisidor Geral pediu-me perdão, e eu lho concedo — aceito agora os agradecimentos do tribunal — protegê-lo-ei sempre, mas não se esqueça desta ameaça de minha cólera voltada contra qualquer tentativa de desobediência” (cf. Desdevises du Dezart, L’Espagne de L’Ancien Regime. La Société 101 s). A história atesta outrossim como a Santa Sé repetidamente decretou medidas que visavam a defender os acusados frente à dureza do poder régio e do povo. A Igreja em tais casos distanciava-se nitidamente da lnquisição Régia, embora esta continuasse a ser tida como tribunal eclesiástico. Assim aos 2 de dezembro de 1.530, Clemente VII conferiu aos lnquisidores a faculdade de absolver sacramentalmente os delitos de heresia e apostasia; destarte o Sacerdote poderia tentar subtrair do processo público e da infâmia da Inquisição qualquer acusado que estivesse animado de sinceras disposições para o bem. Aos 15 de junho de 1.531, o mesmo Papa Clemente VII mandava aos Inquisidores tomassem a defesa dos mouriscos que, acabrunhados de impostos pelos respectivos senhores e patrões, poderiam conceber ódio contra o Cristianismo. Aos 2 de agosto de 1.546, Paulo III declarava os mouriscos de Granada aptos para todos os cargos civis e todas as dignidades eclesiásticas. Aos 18 de janeiro de 1.556, Paulo IV autorizava os sacerdotes a absolver em confissão sacramental os mouriscos. Compreende-se que a Inquisição Espanhola, mais e mais desvirtuada pelos interesses às vezes mesquinhos dos soberanos temporais, não podia deixar de cair em declínio. Foi o que se deu realmente nos séculos XVIII e XIX. Em conseqüência de uma revolução, o Imperador Napoleão I interveio no governo da nação, aboliu a Inquisição Espanhola por decreto de 4 de dezembro de 1.808. o rei Fernando VII, porém, restaurou-a em 1.814, a fim de punir alguns de seus súditos que haviam colaborado com o regime de Napoleão. Finalmente, quando o povo se emancipou do absolutismo de Fernando VIl, restabelecendo o regime liberal no país, um dos primeiros atos das Cortes de Cadiz foi a extinção definitiva da Inquisição em 1.820. A medida era, sem dúvida, mais do que oportuna, pois punha termo a uma situação humilhante para a Santa Igreja.

 

Tomás de Torquemada


Tomás de Torquemada nasceu em Valladolid (ou, segundo outros, em Torquemada) no ano de 1420. Fez-se Religioso dominicano, exercendo por 22 anos o cargo de Prior do convento de Santa-Cruz em Segóvia. Já aos 11 de fevereiro de 1.482 foi designado por Sixto IV para moderar o zelo dos lnquisidores espanhóis. No ano seguinte o mesmo Pontífice o nomeou Primeiro Inquisidor de todos os territórios de Fernando e Isabel. Extremamente austero para consigo mesmo, o frade dominicano usou de semelhante severidade nos seus procedimentos judiciários. Dividiu a Espanha em quatro setores inquisitoriais, que tinham como sedes respectivas as cidades de Sevilha, Córdova, Jaen e Villa (Ciudad) Real. Em 1.484 redigiu, para uso dos Inquisidores, uma “Instrução”, opúsculo que propunha normas para os processos inquisitoriais, inspirando-se em tramites já usuais na Idade Média; esse libelo foi completado por dois outros do mesmo autor, que vieram a lume respectivamente em 1.490 e 1.498. O rigor de Torquemada foi levado ao conhecimento da Sé de Roma; o Papa Alexandre VI, como dizem algumas fontes históricas, pensou então em destitui-lo de suas funções; só não o terá feito por deferência a corte da Espanha. O fato é que o Pontífice houve por bem diminuir os poderes de Torquemada, colocando a seu lado quatro assessores munidos de iguais faculdades (Breve de 23 de junho de 1.494). Quanto ao número de vítimas ocasionadas pelas sentenças de Torquemada, as cifras referidas pelos cronistas são tão pouco coerentes entre si que nada se pode afirmar de preciso sobre o assunto. Tomás de Torquemada ficou sendo, para muitos, a personificação da intolerância religiosa, homem de mãos sanguinolentas… Os historiadores modernos, porém, reconhecem exagero nessa maneira de conceituá-lo; levando em conta o caráter pessoal de Torquemada, julgam que este Religioso foi movido por sincero amor e verdadeira fé, cuja integridade lhe parecia comprometida pelos falsos cristãos; daí o zelo extraordinário com que procedeu. A reta intenção de Torquemada ter-se-á traduzido de maneira pouco feliz. De resto, o seguinte episódio contribui para desvendar outro traço, menos conhecido, do frade dominicano: Em dada ocasião, foi levada ao Conselho Régio da Inquisição a proposta de se impor aos muçulmanos ou a conversão ao Cristianismo ou o exílio. Torquemada opôs-se a essa medida, pois queria conservar o clássico princípio de que a conversão ao Cristianismo não pode ser extorquida pela violência; por conseguinte, a Inquisição deveria restringir sua ação aos cristãos apóstatas; estes, e somente estes, em virtude do seu Batismo, tinham um compromisso com a Igreja Católica. Como se vê Torquemada, no fervor mesmo do seu zelo, não perdeu o bom senso neste ponto. Exerceu suas funções até à morte, aos 16/09/1.498.

Inquisição em Portugal

Em síntese: O Instituto Histórico e Geográfico do Brasil publicou os Regimentos da Inquisição em Portugal (vigentes também no Brasil) datados de 1.552, 1.613, 1.640 e 1.774 (este assinado pelo Marquês do Pombal). São acompanhados de uma Introdução redigida pela Professora Sônia Aparecida de Siqueira, que põe em evidência o fato de que a Inquisição nunca foi uma instituição meramente eclesiástica, mas, em virtude da lei do padroado, foi mais e mais dirigida pela Coroa de Portugal em vista de seus interesses políticos. A Santa Sé teve de se opor mais de uma vez aos processos da Inquisição, a fim de tutelar os cristãos-novos e outros cidadãos julgados pelo Tribunal. A Inquisição está sempre em foco. É motivo de acusações à Igreja, muitas vezes mal fundamentadas ou repetidas como chavões, sem que o público tenha acesso aos documentos básicos que nortearam a Inquisição. Poucas pessoas têm contato direto com os arquivos e as fontes escritas do movimento inquisitorial.

Eis que o Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (IHGB) publicou no número 392 (ano 157) da sua revista, correspondente a julho/setembro 1996 (pp. 495-1.020) os Regimentos do Santo Ofício da Inquisição do Reino de Portugal datados de 1552, 1613, 1640, 1774 (este assinado pelo Marquês de Pombal), além de um Regimento sem data. Tal edição esteve aos cuidados da Profª. Sônia Aparecida de Siqueira, sócia-correspondente do IHGB em São Paulo, que escreveu longa Introdução a tais documentos. Como nota o Prof. Arno Wehling, presidente do IHGB em 1996, a Dra- Sônia Aparecida localizou a Inquisição e seus sucessivos regimentos nos diferentes momentos históricos, sublinhando, inclusive, a progressiva expansão do poder real sobre a instituição, culminando no regime sectarista. (p. 495)

Como se sabe, a Inquisição nunca (nem na Idade Média) foi um Tribunal meramente eclesiástico. Isto era inconcebível outrora, dado que o Estado era oficialmente cristão e, por isto, se julgava responsável pelos interesses da fé cristã; a tal título intervinha ele em questões de foro religioso, por vezes ditando normas à Igreja. Tal realidade se acentuou na Península Ibérica (Espanha e Portugal) a partir do século XVI, em virtude dos privilégios do padroado. Com efeito, já que os reis de Espanha e Portugal eram descobridores de novas terras, às quais levavam a fé católica, a Santa Sé lhes concedeu poderes especiais para organizarem a vida da Igreja nas regiões recém-descobertas; daí a grande ingerência nos assuntos religiosos, a título de colaboração com a Igreja… colaboração que redundou, aos poucos, em sufocação da autoridade eclesiástica em favor dos interesses da Coroa.

Nas linhas subseqüentes, apresentaremos as origens da Inquisição em Portugal e alguns traços da explanação da Profª. Sônia Aparecida, que põem em relevo a intervenção sempre mais prepotente dos monarcas em assuntos inquisitoriais.

 

Origens da Inquisição Portuguesa

 

O rei D. João III de Portugal (1521-57) desejava que o Papa estabelecesse a Inquisição em seu reino, tendo em vista especialmente a eliminação dos judeus não plenamente convertidos ao Cristianismo. Durante 27 anos, Sua Majestade e a Santa Sé se defrontaram, visto que o rei pedia poderes, em matéria religiosa, que o Papa não lhe queria conceder: Assim, conforme o monarca, o Inquisidor-mor seria escolhido pelo rei, assim como os outros Inquisidores (subordinados), podendo estes últimos ser não apenas clérigos, mas também juristas leigos, que passariam a ter a mesma jurisdição que os eclesiásticos. Mais: Conforme o desejo do rei, os Inquisidores estariam acima dos Bispos e dos Superiores das Ordens Religiosas, de modo que poderiam processar e condenar eclesiásticos sem consultar os respectivos prelados; os Bispos ficariam impedidos de intervir em qualquer causa que os Inquisidores chamassem a si. Ainda: Os Inquisidores poderiam impor excomunhões reservadas à Santa Sé e levantar as que eram impostas pelos Bispos. Como se vê, o rei queria desta maneira obter o controle total sobre os Bispos e a Igreja em Portugal.

Finalmente aos 17/12/1.531 o Papa Clemente VII concedeu a Inquisição em Portugal, mas em termos que contrariavam às solicitações de D. João III: Em vez de outorgar ao rei poderes para nomear os Inquisidores, o Papa nomeou diretamente um Comissário da Sé Apostólica e Inquisidor no reino de Portugal e nos seus domínios. Esse Comissário poderia nomear outros Inquisidores, mas a sua autoridade não estava acima da dos Bispos, que poderiam também, por seu lado, investigar as heresias.

Os termos desta Bula ou concessão nunca foram aplicados em Portugal. O Inquisidor nomeado, Frei Diogo da Silva, era o confessor do rei; não aceitou o cargo, talvez por pressão do monarca. Apesar disto, em meio a grande agitação popular, começaram a funcionar tribunais inquisitoriais em algumas dioceses anarquicamente. Em conseqüência, o Papa suspendeu a Inquisição e, alegando que o rei o enganara (escondendo-lhe a conversão forçada de judeus no reinado de D. Manoel, 1.495-1.521) ordenou a anistia aos judeus e a restituição dos bens confiscados (Bula de 07/04/1.535).


As razões sobre as quais se baseavam tais decisões de Clemente VII, são assaz significativas: A conversão dos judeus infiéis deve ser propiciada mediante a persuasão e a doçura, das quais Cristo deu o exemplo, respeitando sempre o livre arbítrio humano; a conversão violenta ou extorquida dos judeus sob o reinado de D. Manoel era tida como façanha que não se deveria reproduzir. A Santa Sé assim procurava defender e proteger os cristãos-novos, vítimas do poder régio.

O Papa Clemente VII, que resistira a D. João III, morreu em 1.534, tendo por sucessor Paulo III. O rei voltou a insistir junto ao Pontífice para conseguir o tipo de tribunal de Inquisição que atendia aos interesses da Coroa. Não o obteve propriamente, mas por Bula de 23/05/1.536 Paulo III restabeleceu a Inquisição em Portugal, nomeando três Inquisidores e autorizando o rei a nomear outro; além disto, o Pontífice mandava que, durante três anos, os nomes das testemunhas de acusação não fossem acobertados por segredo e durante dez anos os bens dos condenados não fossem confiscados; os Bispos teriam as mesmas faculdades que os Inquisidores na pesquisa das heresias. Por intermédio de seu Núncio em Lisboa, o Papa reservava a si o direito de fiscalizar o cumprimento da Bula, de examinar os processos quando bem o entendesse e de decidir em última instância.

É a partir desta Bula (23/05/1.536) que se pode considerar estabelecida a Inquisição em Portugal. O rei, que não se dava por satisfeito com as disposições da Santa Sé, começou a burlá-las. Quis, antes do mais, subtrair a Inquisição à vigilância do Pontífice e, para tanto, suscitou incidentes numerosos a ponto de obrigar a partir o Núncio Capodiferro, que tinha poderes para suspender o tribunal, caso não fossem respeitadas as cláusulas de proteção aos cristãos-novos. Além disto, nomeou Inquisidor o Infante D. Henrique, seu irmão, então Arcebispo de Braga que, com seus 27 anos, não tinha idade legal para exercer tais funções. Enfim aproveitava ou provocava ocasiões ou pretextos para fazer que o público cresse na má fé dos judeus convertidos (cristãos novos): Assim apareceu um cartaz nas portas da catedral e de outras igrejas de Lisboa, anunciando a chegada próxima do Messias… Um alfaiate de Setúbal apresentou-se ao público como Messias, o que não foi levado a sério pela população, mas bastou para que os agentes do rei fizessem grandes represálias e tentassem convencer Roma dos perigos do judaísmo em Portugal.

Apesar da má vontade do rei, o Papa fazia questão de manter sob seu controle o Santo Ofício em Portugal. Reforçando normas anteriores, o Pontífice emitiu nova Bula em 12/10/1.539, que proibia aduzir testemunhas secretas e concedia outras garantias aos acusados, entre as quais o direito de apelação para o Papa; determinava outrossim que os emolumentos dos Inquisidores não fossem pagos mediante os bens dos prisioneiros.

Também esta Bula não foi observada em Portugal. O Papa então resolveu suspender a Inquisição pelo Breve de 22/09/1.544; tomou a precaução de fazer publicar de surpresa em Lisboa este documento, levado secretamente para lá por um novo Núncio. O rei, profundamente golpeado, jogou a sua última cartada; requereu ao Papa que revogasse a suspensão e restaurasse a Inquisição sem qualquer limitação, e acrescentava a ameaça: “Se Vossa Santidade não prover nisso, como é obrigado e dele se espera, não poderei deixar de remediá-lo confiando em que não somente do que suceder Vossa Santidade me haverá por sem culpa, mas também os príncipes e os fiéis cristãos que o souberem, conhecerão que disso não sou causa nem ocasião.”

Tais palavras continham a ameaça de desobediência formal ao Papa e de cisão na Igreja. D. João III seguiu o conselho que lhe fora dado pelos seus dois enviados à Santa Sé em 1.535: Negasse obediência ao Papa, imitando o exemplo do rei Henrique VIII da Inglaterra. Entre a obediência ao Papa, como fiel católico, e a rebeldia declarada que lhe permitisse instituir um tribunal, que era no fundo um instrumento da política régia, o rei de Portugal estava disposto a seguir a segunda via.

O Pontífice via-se naquele momento (1.544/45) premido por outras graves preocupações, como a convocação e a preparação do Concílio de Trento, sobre o qual o Imperador Carlos V e outros monarcas tinham seus interesses. Em conseqüência, acabou por aceitar os pontos principais da solicitação de D. João III: Por Bula de 16/07/1.547, nomeou lnquisidor-Geral o Cardeal Infante D. Henrique, e retirou aos Núncios em Lisboa a autoridade para intervirem nos assuntos de alçada da Inquisição; esta seguiria seus trâmites próprios, diversos dos habituais nos processos comuns. Ao mesmo tempo, porém, o Papa mitigava suas disposições: Promulgou um Breve que suspendia o confisco de bens por dez anos; outro Breve suspendia por um ano a entrega de condenados ao braço secular (ou a aplicação da pena de morte). Em outro Breve ainda o Papa fazia recomendações tendentes a moderar os previsíveis excessos da Inquisição e a permitir a partida dos cristãos-novos para o estrangeiro. Pouco antes de morrer ou aos 08/01/1549, Paulo III editou novo Breve, que abolia o segredo das testemunhas; Breve este que provavelmente nunca foi aplicado em Portugal.

Eis algumas passagens muito significativas da Introdução redigida pela Profª. Sônia Aparecida:

 

Cristãos novos

 

Urgia acalmar a inquietação causada pela presença dos cristãos-novos, inimigos em potencial pelo seu supranacionalismo. O combate às minorias dissidentes era um programa inadiável. Os neo-cristãos podiam ser portadores do fermento herético por suas crenças residuais e por seus íntimos contatos com luteranos e judeus. E mais: Com a frutificação das descobertas, da exploração do mundo colonial que se montava, com o comércio ultramarino, com a urbanização progressiva, os cristãos-novos ganhavam força econômica e tendiam a uma solidariedade que lhes acrescia o poder de ação no meio social. O trono sentiu a ameaça que representariam se não fossem bons cristãos. Reagiu. A Inquisição foi criada e estendeu-se sobre cristãos-novos, cristãos-velhos, povo, hierarquias. (pp. 502s)

Certas determinações de Roma avocando a si, diretamente, ou por meio de seus Núncios, jurisdição sobre os cristãos-novos revelam que existia ainda uma certa indefinição da hierarquia judicial, bem como o propósito pontifício de reservar para a Cúria a jurisdição superior. Em 1.533, a Bula de Clemente VII Sempiterno Regi revogou todos os poderes que haviam sido outorgados a Frei Diogo da Silva, Inquisidor-mor de Portugal, chamando a si todas as causas dos cristãos-novos, mouros e heréticos. Em 1.534, um Breve de Paulo III dirigido a D. João III mandava que os Inquisidores suspendessem os processos contra pessoas suspeitas de heresia. Em 1535, uma Carta Pontifícia determinava que os Núncios de Portugal pudessem conhecer as apelações dos cristãos-novos.

No mesmo ano, escrevia Paulo III ao rei sobre os cristãos-novos, e aos cristãos-novos; interferindo diretamente na definição do processo, concedia que pudessem tomar por procuradores e defensores quaisquer pessoas que quisessem.

As Bulas de perdão geral que paralisavam a ação do Tribunal vinham de Roma, diluindo, de tempos em tempos, a autoridade dos Inquisidores. Confirmando o primeiro perdão concedido por Clemente VII, concedia Paulo III um segundo em 1.535 e, em 1547, pela Bula Illius qui misericors, concedia um terceiro. Ao depois, outros indultos gerais foram sendo concedidos, e, quando o próprio rei os negociava com os cristãos-novos, tinha de pleiteá-los junto à Cúria Romana, como aconteceu com Felipe III em 1.605.

Aliás, as intromissões da Cúria nas atividades da Inquisição continuaram, decrescentes sem dúvida, mas constantes pelo tempo afora, dada a natureza de sua justiça. De 1.678 a 1.681, o Santo Ofício chegou a ser suspenso em Portugal por decisão do Pontífice, o que indica que, apesar da amplificação do absolutismo, os tribunais continuavam a carecer da aquiescência de Roma para atuar. (pp. 506s)

 

A figura do Inquisidor


Capaz, idôneo, de boa consciência, devia ser o Inquisidor: Requisitos que garantiriam a aplicação da justiça com equanimidade. Pedia-se também constância… (p. 526) O juízo coletivo sobre a Inquisição dependeria do comportamento de seus oficiais, de sua capacidade de corrigir as próprias imperfeições, de imolar impulsos e interesses em prol do bom nome do Tribunal. A verdade é que, na prática, ou por causa da vigilância social, ou do controle institucional, ou, talvez, da fusão dos ideais individuais com os do Santo Ofício, não temos notícia de escândalos ou abusos dos agentes inquisitoriais. Geralmente, as exceções apenas confirmariam a regra. Alguns Inquisidores, por suas virtudes ou pelo sacrifício, chegaram a ser elevados aos altares.

Em nota (74) diz a autora: “Não pertenceram ao Santo Ofício português, mas foram santificados os Inquisidores S. Raimundo Penafort, S. Toríbio Mongrovejo, S. Pedro de Verona, mártir, S. Pio V, S. Domingos de Gusmão, S. Pedro de Arbuês, S. João Capistrano. Beatificados foram Pedro Castronovo, legado cisterciense, Raimundo, arcediago de Toledo, Bernardo, seu capelão. Inquisidores também, dois clérigos, Fortanerio e Ademaro, núncios do Santo Ofício de Tolosa, martirizados pelos albigenses, Conrado de Marburg, mártir, pároco e Inquisidor da Alemanha, e o confessor de Sta.Isabel da Hungria, João de Salermo. O Inquisidor da Frísia e Holanda no século XVI, Guilherme Lindano, foi considerado Venerável” (p. 527).

A Inquisição Pombalina

“A idéia de separação de um Estado só político e de uma igreja só religiosa germina nessa época”. Pretende-se uma nova política religiosa que usa a tolerância como seu instrumento. Impunha-se conexão com o Absolutismo, ainda então vivo como idéia política. Limitar o poder jurisdicional da Igreja e difundir o espírito laico.

Em meio a esse clima das reformas pretendidas, a questão religiosa punha em relevo o Santo Ofício, tradicional defensor da ortodoxia das crenças, fiel zelador da unidade das consciências. Não se pensa em extingui-lo, mas, sim, em reformá-lo, adequando-o aos novos tempos. Urgia a elaboração de um novo Regimento que tornasse a Inquisição mais inofensiva e pusesse o Tribunal realmente nas mãos da Coroa.

Esse novo Regimento foi mandado executar pelo Cardeal da Cunha. No seu Preâmbulo, justifica-se a sua necessidade na medida em que as leis que geriam o Santo Ofício teriam sido, ao longo dos séculos, distorcidas pelos jesuítas, interessados em dar ao Papa o supremo poder sobre a Inquisição. Desde o governo do Cardeal Infante D. Henrique (dominado, diz o Cardeal da Cunha, pelo seu confessor, o jesuíta Leão Henriques) até ao Reinado de D. João V, foi o Tribunal escapando ao poder do rei. Teria chegado ao máximo a influência da Companhia, sob o Inquisidor D. Pedro de Castilho, que tornou a legislação mais jesuítica do que régia. (p. 562)

Os tempos eram diversos. O Estado se configurava de outra maneira, definindo diferentes funções. Cioso de seu poder, recusava-se a partilhá-lo com quaisquer instituições ou estamentos. Impunha-se a necessidade de limitar o poder jurisdicional da Igreja. Assim o Regimento de 1.774 visou o fortalecimento do poder da Coroa, invocando o direito do Reino. Instalava-se o regalismo absolutista como ideal de união cristã na ordem civil. (p. 563)

É importante conhecer os dados históricos dos quais as páginas deste artigo referem apenas alguns poucos traços. Contribuem para repor a verdade em foco, mostrando as causas latentes da Inquisição em Portugal (como também na Espanha). Os estudiosos não podem deixar de exprimir sua gratidão ao Instituto Histórico e Geográfico do Brasil pela publicação do trabalho da Profª. Sônia Aparecida de Siqueira e dos Regimentos da Inquisição Portuguesa (que vigoraram também no Brasil colonial).

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