sexta-feira, 6 de setembro de 2024

 Recebi de um amigo o livro em questão, talvez na tentativa de diminuir meu "preconceito" para com a Fraternidade Sacerdotal São Pio X, ou para justificar a paixão de tantos por essa instituição, ao passo que com mesma paixão atacam outras. 


O livro, de 270 páginas, lançado pela Editora Gratia em julho de 2024, é apresentado assim, na sinopse da capa:

Em FSSPX: A Defesa, Kennedy Hall oferece uma das mais brilhantes e
abrangentes defesas acerca da Fraternidade Sacerdotal de São Pio X
(FSSPX), que fora publicada até o momento. Sem deixar pedra sobre pedra,
Hall aborda todas e quaisquer objeções levantadas contra a FSSPX,
incluindo ataques recentes de vários críticos da Fraternidade. Leitores
com pouco conhecimento da FSSPX ou leitores com amplo conhecimento, sem
dúvida, acharão este livro tão útil como uma espécie de “loja de
conveniência”, para os assuntos ligados à FSSPX.
[...]
Esta Apologia analisa as considerações teológicas, canônicas e
históricas para a fundação da FSSPX. No final, todas as considerações se
resumem a Salus Animarum Suprema Lex. [...].

O livro realmente descontrói vários desentendidos do público menos especializado, mas é bastante pretencioso dizer que "sem deixar pedra sobre pedra, Hall aborda todas e quaisquer objeções levantadas contra a FSSPX". Na verdade, deixa muitas pedras no caminho, bastante empilhadas. É uma defesa apaixonada, sem dúvida, que afaga os simpatizantes, mas não convence os críticos, porque não aborda os principais problemas (que é a negação, por parte deles, da Missa Nova e do Concílio Vaticano II); ao invés, repete exaustivamente a ideia de "estado de necessidade" e do suposto direito de agirem assim, porque Lefebvre quis assim e tinha direito de agir assim.

O fato crucial que desmonta a tese do "estado de necessidade" não é sequer mencionado pelo autor, mas o prefaciador, Padre Charles Murr, o mencionou, quando conta os fatos que precederam as consagrações episcopais sem mandato, que resultaram em excomunhão automática dos envolvidos: 

"[...] o novo pontífice, o Papa João Paulo II, queria uma convergência de ideias com o Arcebispo Lefebvre. Ele queria uma reconciliação. [...] 

[O Cardeal Gagnon] chegou a Écône em onze de novembro de 1987, e permaneceu lá até nove de dezembro. Embora ele não tenha conseguido convencer Lefebvre a aceitar a proposta da Santa Sé -- ou seja, principalmente, que Lefebvre consagrasse apenas um novo bispo para garantir a sobrevivência da FSSPX, e não quatro) -- ele (Gagnon) não considerou a missão um fracasso completo. [...]

Francamente, achei a opinião do Cardeal sobre o Arcebispo Marcel Lefebvre, surpreendente. 'Ele [Lefebvre] não confia no Vaticano. E quem ode culpá-lo por isso? Você pode? Durante anos, ele tentou lidar com o [Secretário de Estado] Villot e o [Prefeito de Universidades e Seminários Católicos] Garrone. E durante anos, tudo o que fizeram foi bloquear seus esforços para falar e argumentar diretamente com o Santo Padre. Você também desconfiaria do Vaticano. Embora eu não possa tolerar o que ele fez (consagrando quatro bispos em vez de um), posso entender por que ele fez isso [...]'".

O livro não trata do assunto, como já disse, e talvez o leitor que desconheça os fatos não tenha percebido o que ocorreu. Resumo assim:

  • A FSSPX existia, funcionava e crescia normalmente, mas precisava de um bispo para dar continuidade;
  • O Vaticano sabia disso, mas o mandato para ordenar um bispo era sempre adiado, e o acesso de Lefebvre ao Papa Paulo VI era dificultado por alguns prelados de Roma, segundo o relato;
  • Com João Paulo II a situou mudou: o próprio Cardeal Ratzinger, segundo o relato, foi responsável pela intercessão ao Papa, que encarregou o Cardeal Gagnon de uma visita;
  • A visita foi positiva, e o Cardeal levou a Roma ótimas impressões da Fraternidade, mas Lefebvre não aceitou a proposta de ordenar um bispo, pois queria quatro! (o relato menciona isso duas vezes, uma vez pelo Padre Murr e outra na citação do Cardeal).

Veja, se Roma concedeu a ordenação de um bispo, não havia "estado de necessidade", mas apenas uma grande desconfiança. Se tivesse aceitado ordenar um bispo, manteria a ordenação dos padres, a Fraternidade estaria canonicamente reconhecida e a história seria outra. 

Só Deus sabe qual seria o futuro. Lefebvre quis julgar o rumo da Igreja de acordo com sua percepção subjetiva. Aliás, quase toda a argumentação de "defesa" de Lefebvre e da FSSPX é subjetiva. 

Continuemos com o livro.

Na Apresentação, o autor já começa a expor um pouco dessas avaliações subjetivas. Diz ele, quando apresenta a questão da liturgia: "podemos usar nosso senso Católico e avaliar o que é condizente com a Majestade Divina e o que não é." (p. 22). Aqui ele tem em mente o julgamento que fazem da reforma litúrgica do Vaticano II. Segundo esse pensamento, eu posso julgar, com meu senso católico, que uma reforma litúrgica é ruim e não aceitá-la. Ora, nada mais contrário ao senso católico insurgir-se contra a legítima autoridade da Igreja de determinar os ritos. Só o Magistério da Igreja pode avaliar de forma autorizada o que é ou não é condizente com a Majestade Divina, não o "nosso" senso católico, que é bastante subjetivo se não é unânime.

Aqui poderíamos abrir um parêntesis para refutar uma tréplica que o autor (e quem concorda com ele) poderia fazer: o mundo católico estranhou, de fato, a reforma litúrgica, tal como aconteceu. Como aconteceu? Em muitos lugares, talvez na maioria, foi de improviso, com abusos e desobediência. Tal era a situação do clero, formado antes do Vaticano II, obviamente. Isso marcou profundamente o "senso católico", de modo que até hoje poucas pessoas têm acesso a uma missa conforme o missal. Não se pode, por isso, acusar a Igreja pelos frutos podres, pelo joio em meio ao trigo. O senso católica manda presumir que a reforma é boa, lícita, católica. Basta implementá-la corretamente. E se, futuramente, houver outra reforma, igualmente.

Continuando na Apresentação, o autor reconhece que os fiéis não têm o direito de escolher um rito simplesmente pelo gosto pessoal, mas têm o direto à Tradição. Isso ele o faz tendo em vista dizer, adiante, que se a reforma litúrgica foge à Tradição, os fiéis têm o dever de desobedecer a autoridade humana que promulgou o rito. Ora, mas quem diz o que é ou não é pertencente à Tradição? Quem julga a autoridade máxima da Igreja capaz de alterar os ritos? Certamente não é o "senso católico" de alguns padres e seus simpatizantes.

O autor acredita que práticas e hábitos são parte da Tradição, como transmissão do depósito de fé, da Revelação. Assim, práticas que não persistiram no tempo não fazem parte da Tradição, como por exemplo, cita a Comunhão na mão (p. 25). Ora, práticas, hábitos, disciplinas, mesmo o aspecto cerimonial da liturgia, não são parte do depósito de fé, logo podem desaparecer, ressurgir, se adaptar etc., se a autoridade disciplinar da Igreja o quiser.

O capítulo 1, intitulado "A Fumaça de Satanás", começa com uma citação descontextualizada de Paulo VI, onde ele dizia a frase-título:

"A Igreja não é mais confiável. Confiamos no primeiro profeta profano que vem nos falar em algum jornal..."

O autor coloca a situação como se fosse uma confissão de culpa. Isso é comum, infelizmente, e muitos interpretam - erroneamente, às vezes desonestamente - que o Papa se referia ao próprio Concílio Vaticano II ou à Missa Nova, mas na própria continuação da homilia ele faz a importante distinção entre o Concílio em si e a sua equivocada interpretação e aplicação. Pelo contrário, o papa atribui a ação de Satanás como uma tentativa de sufocar os frutos do Concílio.

No papel de representante dos defensores da FSSPX, o autor acredita piamente que Lefebvre "salvou" a Igreja (p. 33) por meio de um ato concreto heroico, para o qual "ninguém pode fornecer uma explicação teológica completamente satisfatória".

Em uma analogia da Igreja com um navio cujo "capitão fosse negligente em seu dever", diz que confia que o navio não vai afundar, mas que um tripulante heroico precisa salvar os passageiros. Essa é a "crise" - um navio que não pode afundar - que justifica um ato "heroico" de falta de fé, presunção, soberba e insubordinação de um tripulante: confortar a aflição de alguns passageiros com as ondas.

A linguagem dúbia do autor, em afirmar não afirmando que a Igreja fora da FSSPX professa e vive heresias, é evidente em vários pontos:

"Este autor afirma que há uma grave crise na Igreja e que ela é universal, o que significa que toca todas as particularidades da Igreja. Isso não significa que todo católico seja um herege, ou que todo sacerdote seja um modernista. Significa, no entanto, que a heresia e outros males são, infelizmente, normas".

Mas não aponta nada de concreto, em todo o livro.

No capítulo 2, "Quem é Marcel Lefebvre e o que é a FSSPX", ele afirma que Lefebvre "concordou com os documentos do Concílio". Fato é que apresentou reservas, como era normal nas discussões do Concílio, mas que os documentos finais foram aceitos e assinados em sua redação final. 

Imediatamente, o autor não vê a incoerência em afirmar que o problema é o Concílio, quando, na verdade, o problema veio não dos textos do Concílio, mas do pós-Concílio, da confusão generalizada feita por muitos padres que se aproveitaram dos rumores de mudanças para já aplicá-las, à revelia dos textos e ordens autênticas.

Curioso é que em nenhum lugar do livro se diz a data de fundação da FSSPX: 01/11/1970, 5 anos depois de encerrado o Concílio Vaticano II. Ou seja, o problema que levantam hoje (o Concílio) não era problema. A fundação é posterior à promulgação do novo Missal.

Nesse capítulo que pretendia ser histórico, omitiu totalmente e propositalmente o mandato de ordenar um bispo, que já mencionamos, pois demonstra conhecer essa objeção, e começa a justificar o ato de insubordinação como resistência à heresia, ao comparar a crise do Vaticano II com a crise ariana.

O capítulo 3 pretende responder à acusação de que a FSSPX estaria em cisma. Aqui não precisaríamos nos demorar, visto que eles afirmam, oficialmente, reconhecer o Sumo Pontífice atual e demais bispos. Então, juridicamente, não estão em cisma. 

Mas, na prática, há uma dubiedade. Afirmam que Lefebvre nunca estabeleceu uma Igreja ou hierarquia separada. Porém, no mesmo sermão das Consagrações episcopais que resultaram em excomunhão, Lefebvre cria estar aderindo a uma "Roma eterna" em que o papa e o episcopado de então estavam afastados. 

Na prática, criou uma igreja e uma hierarquia paralela. 

Na prática, ainda hoje, seus sacerdotes não se subordinam a ninguém que não seja da própria FSSPX.

Na prática, "um grupo cismático estabelece ou adere às suas próprias autoridades, negando a jurisdição eclesial e até mesmo o direito canônico da Igreja Católica" (p. 55), ainda que rezem, da boca pra fora, pelo Papa e pelo bispo local na liturgia.

Por várias vezes, o autor vai acusar o Papa João Paulo II de erro ou ignorância, porque na Carta Apostólica Ecclesia Dei classifica o ato de Lefebvre como cismático. Distorce desonestamente vários trechos da Carta, como quando tenta estabelecer uma excomunhão a todos os fiéis "ligados ao movimento de Lefebvre". Em vez disso, o que o papa faz é um apelo a não apoiar a FSSPX. 

Para apelar ao subjetivo e à desobediência, o autor exagera o teor do Motu proprio papal, dizendo que seria uma declaração supostamente vinculativa, mas que por conter erros é "legalmente insuficiente". Como se eles ligassem muito para as leis da Igreja...

No breve capítulo 4, o autor vai responder se, embora não em cisma, eles poderiam ser "cismáticos". Ele toma as duas palavras como sinônimas, então a resposta é óbvia: não estão em cisma e não são cismáticos. Mas poderíamos parafrasear uma de suas acusações sobre a Missa nova ("herética e heretizante"): podem não ser cismáticos, mas são "cismatizantes". Veremos.

O capítulo 5 continua a discussão sobre cisma/cismático. Uma frase me chama a atenção por sua dissimulada ignorância:

"Eles rejeitam a autoridade do Papa ou negam a autoridade do bispo em sua diocese? Ainda não encontrei um único sacerdote da FSSPX que tenha essa visão. Certamente não é a posição oficial da instituição." (p. 69)

É impressionante como conhecem a verdade mas a dissimulam para benefício próprio: 

"Se alguém declarar publicamente que um grupo é culpado de cisma, só deve fazê-lo depois que a autoridade apropriada da Igreja já tiver dada essa declaração". (p. 70)

Ora, foi o que o Papa fez, ao alertar sobre o "ato cismático", mas eles solenemente ignoram e sofisticamente manipulam.

O capítulo 6 tem por título: "A FSSPX está em comunhão com Roma". Parece irônico, mas na verdade aplicam o termo "estar em comunhão" simplesmente com o fato de não estarem excomungados, como se comunhão fosse um termo binário, que só comporta sim e não. 

O autor mesmo dá um exemplo de como se pode não estar em plena comunhão: "Usando essa lógica, diríamos que os grupos ortodoxos não estão em 'plena comunhão' ou que os protestantes estão em 'comunhão parcial' com os católicos". Só que não aceita essa lógica, tão simples para o senso católico e à eclesiologia. Com comparações exageradas e citações descontextualizadas, o autor preenche o livro com argumentos de cunho aparentemente jurídico, coisa que deplora quando vem dos "acusadores da FSSPX".

Ele usa da tolerância da Igreja para com a FSSPX como se fosse argumento da "plena comunhão". Além disso, comete várias imprecisões, que sinceramente já não sabemos se é proposital ou por ignorância. Por vezes até pensei que poderia haver problemas de tradução do livro (o original é em inglês), tamanha a confusão de alguns textos. Fica a dúvida, pois não tenho acesso ao original.

Por exemplo, ele afirma que "as excomunhões foram oficialmente reconhecidas como levantadas em 2009", podendo dar a entender que elas foram nulas desde o começo. Mas o que o papa fez em 2009 foi levantar, naquele ato, em 2009, as excomunhões. Lembremo-nos que excomunhão é uma pena. Levantar a excomunhão significa suspender as penas, não declará-las nulas.

Confusão (ou distorção proposital) fazem até com os textos dos santos. Citam São Roberto Belarmino assim: "só existe uma Igreja, não duas [... na mesma] profissão da verdadeira fé, a comunhão sacramental e a submissão ao legítimo pastor, o Romano Pontífice". Ao comentar esse mesmo claríssimo trecho, porém, dizem: "Há uma unidade interior e uma unidade exterior... Não é o corpo que une a alma, mas a alma que une o corpo; assim, desses dois níveis, a unidade interior da Igreja é, sem dúvida, o mais importante e a causa do outro". Tentam assim justificar sua absurda tese de que há duas Igreja, uma "Roma eterna" (eles) e uma outra Roma (o Papa com seus bispos), ao mesmo tempo que, se levarmos a analogia do corpo e alma ao seu extremo, estão afirmando que vivem com a alma fora do corpo. Ora, alma separada do corpo indica morte.

O capítulo 7 fala do "Status canônico irregular". O autor sabe e até o menciona, mas faz de conta que não, que "a FSSPX não tem uma situação 'normal'.". É só isso que se refere a situação "irregular": anormal, fora das regras. Ponto. Não precisava gastar páginas atacando o uso da expressão. Reconhecem que "a reconciliação precisa acontecer", mas "cabe a Roma reconciliar-se com a Tradição"(!!!) "Talvez possamos deixar de lados nossos [sic] Códigos de Direito Canônico e pensar com nosso [sic] senso católico sobre como nada disso faz sentido." (!!!) O autor espera que Roma defina o que significa o termo "irregular"!

Os últimos papas sofreram com essa birra. Todas as vezes que estenderam a mão, em gesto de misericórdia, estima e liberalidade, para conceder algum reconhecimento à FSSPX e a seus atos, tiveram seus gestos catalogados no rol do "reconhecimento", como cita exaustivamente esse capítulo. Quando, porém, aponta-se as irregularidades, acusam Roma de incompreensão, erro ou injustiça.

Nesse capítulo, o autor faz uma interpretação do cânone 76 totalmente confusa e non sequitur: "Isso sugere que os sacerdotes da FSSPX sejam pessoas jurídicas". Várias vezes confunde indivíduo com instituição. Ainda bem que ele admite logo em seguida (nunca sei se por ignorância ou malícia): "A situação é, como dissemos, totalmente confusa". (p. 95)

É curioso também como exigem clareza, uso de termos adequados, apesar da "situação anormal", mas todas as vezes que a Igreja o faz, e se o fizer futuramente com ainda mais clareza e rigor, infelizmente temos a impressão de que ignorarão solenemente.

O capítulo 8 continua o tema, agora falando do problema da incardinação e existência jurídica da FSSPX. Como já adiantamos, citam todos os privilégios e permissões que receberam, até declarações orais (como a permissão de ordenar sacerdotes), e tratam isso como se fosse o privilégio canônico (c. 76). Citam novamente a permissão do Papa Francisco para ouvirem confissões e assistirem matrimônios (neste caso se houver acordo local), mas agora acusam o mesmo Papa de estar "intencionalmente confundindo os fiéis, assim como um fariseu tentando pegar Cristo em um enigma jurídico", é claro, jogando essa acusação na boca dos críticos. (p. 98). 

Na falta de bons argumentos e documentos sobre o tema, o restante do capítulo é um tanto confuso, polemista e subjetivista. Usa de um legalismo extremo para não aceitar as decisões desfavoráveis à FSSPX. Às vezes o autor e seus citados cometem alguns atos falhos: "Um dia, a Providência permitirá sua reabilitação oficial" (palavras de Lefebvre que significam que a FSSPX não estava habilitada, regularizada, como permanece até a presente data). 

Para tentar mostrar como a Igreja é injusta com a FSSPX, o autor lembra que em 1975 a Santa Sé ordenou a supressão da Fraternidade, por conta das declarações de Lefebvre. Então pergunta: "O que aconteceria com os seminaristas que deveriam ser ordenados?". A resposta é simples: procurariam outro bispo, outro seminário, outra ordem religiosa. Mas não: para eles, o que deveria acontecer é a desobediência pura e simples, e afirma que "não havia um seminário tradicional funcionando virtualmente [sic] em nenhum lugar do mundo". De fato, a ordem superior foi solenemente ignorada. Diz ainda que essa decisão é apoiada pelo senso comum (p. 114). Fica cada vez mais difícil entender que senso comum é esse.

Ainda não é o capítulo adequado, mas agora o autor menciona o motivo da revolta de Lefebvre: a Missa nova. 

"Pouco antes das suspensões iniciais serem anunciadas, Dom Marcel Lefebvre foi visitado por um embaixador de Roma, que lhe teria dito que se ele rezasse apenas uma Missa Nova, tudo ficaria bem. É claro que o Arcebispo Lefebvre recusou, e ele se baseou no princípio de que a Missa Tradicional nunca foi revogada e que não era obrigatório celebrar a Missa Nova." (p. 116)

Ele estava certo de que a Missa tradicional nunca foi revogada, mas não quanto a não ser obrigatória a Missa Nova. Bastaria recorrer a todos os decretos de aprovação do novo Missal, que se tornou a forma ordinária do rito romano, gostemos ou não. Isso é bem básico, mas o autor insiste no ponto contrário, de que a Missa nunca foi revogada, como se esse fosse o ponto de discussão. Ora, existem outros institutos e até uma administração apostólica que celebram com o Missal anterior, porém a diferença é que não negam a Missa nova.

O autor conclui, teimosamente, que a FSSPX foi suprimida (sim, em 1975) por conta da insistência em rezar a Missa tradicional, o que é falso. Tentando levar seu argumento para o nível moral, o autor cita Santo Agostinho para dizer que não se deve obedecer a uma ordem perniciosa. Neste caso, ele considera perniciosa a Missa celebrada sob o novo missal, o que é um completo absurdo, segundo o senso comum que tanto evoca.

Se antes o argumento para a desobediência era o "fato" de não haver outros bispos e sacerdotes para atender os seminaristas de Lefebvre, agora o autor admite, não sei se em um exagero romântico ou cômico:

"[...] havia outros bispos que poderiam ter formado sacerdotes e outros sacerdotes que poderiam ter servido almas. Sim, havia outros bispos e outros sacerdotes, mas por algum motivo - talvez devido ao ataque de heresia e sacrilégio que tomou conta da Igreja em todo o mundo - dezenas de milhares de pessoas, talvez mais, estavam pedindo ao Arcebispo Lefebvre que fizesse algo para ajudá-los."

Como dissemos no início, é uma defesa tão apaixonada que chega a obscurecer as poucas razões que se poderiam encontrar. 

Neste ponto já quase poderíamos desistir do livro, mas não chegamos nem na metade! Aqui o autor começa a divagar sobre "a maior crise da história da Igreja", acusa mais uma vez os críticos de tecnicismo legais enquanto usa do mesmo artifício, antecipando os capítulos 9 e 10, que continuam falando de jurisdição nesses mesmos termos. 

Segue-se o exagero da "defesa", das analogias e das generalizações: 

"os fiéis que seguiram as novas fórmulas [do Concílio] descobriram que o coração deles não se enchiam [sic] com a caridade divina, nem com o resultado daquele 'reavivamento', mas sim, tiveram uma miocardite espiritual, que ameaçou a vida eterna de todos". (p. 135)

Esse capítulo visa demonstrar o "estado de necessidade" aludido pelo Mons. Lefebvre (que já está claro que não existiu), mas o autor vai desviando o foco para uma suposta necessidade eterna (porque não aceitam o Novus Ordo), com os costumeiros exageros. Diz que aqueles seminaristas corriam "sério risco de serem privados de conhecimento e de saúde espiritual" (p. 143); diz que atualmente "todos já participaram de alguma missa com palhaços" (p. 144); que "pode ser moralmente impossível que alguém participe do Novus Ordo como tal" (p. 144) ao mesmo tempo que comete mais um ato falho ao citar o anátema do Concílio de Trento aos que desprezam os ritos aprovados pela Igreja.

O desprezo pela Missa Nova chega ao nível da ameaça: "corre o risco de absorver uma teologia protestante para você e seus filhos. Se a Missa Nova não te preocupa, então talvez o espírito herético inerente ao protestantismo já tenha sido absorvido por você".

Lamento que o autor, aparentemente, nunca tenha assistido uma Missa Nova rezada segundo o missal. 

O capítulo 11 vai tratar de "Erro comum e Jurisdição de Suplência", questão de direito principalmente sacramental, que nem precisaria ser discutida, já que a Igreja reconhece os sacramentos realizados pelos padres da FSSPX. O problema é que o autor insiste nisso no capítulo 12 ao defender os Tribunais da FSSPX.

Em resumo, é o seguinte: a FSSPX não aceita os tribunais da Igreja católica, então criaram os próprios. Pior: o motivo parece ser a ignorância do que são os processos e declarações de nulidade matrimonial, que o autor chama, sem exceção, de "anulações", dezenas de vezes. E não, ele não está se referindo assim somente ao que ocorre nos tribunais diocesanos, mas até ao que os tribunais da FSSPX faz: 

"O leitor não deve ter a impressão de que a FSSPX rejeita de fato qualquer decisão tomada por um tribunal diocesano por ser diocesano, mas sim que os sacerdotes da FSSPX se importam tanto com as almas, que simplesmente querem garantir que anulações tenham sido obtidas validamente para ministrar às almas corretamente".

Não bastasse esse ato grave de ignorância do direito canônico, o autor se mete a comentar e criticar cada um dos cânones que tratam das falhas de consentimento que poderiam tornar o matrimônio nulo (nunca é anulado, mas declarado nulo porque falhou no seu ato constitutivo; nunca existiu). Além disso, demonstra ignorância quanto ao sacramento do matrimônio, cujos ministros são os nubentes, não a testemunha da Igreja. Assim, justificam que um casal "deve" procurar um sacerdote da FSSPX para se casar validamente "em caso de necessidade"! (p. 153). O gosto pessoal do casal pela FSSPX ou a falta de tempo para a catequese matrimonial é um "caso de necessidade"!

E nesse nível, ainda tem a coragem de defender a existência dos "tribunais da FSSPX" "considerando a grave necessidade que recai sobre as almas que não são capazes de se aproximarem dos tribunais normais devido a um grave defeito nas posições teológicas dos próprios tribunais etc."! (p. 157)

Com essas desculpas esfarrapadas, rejeitam também o Código de Direito Canônico de 1983 (p. 167) e julgam eles mesmos questões de ordens sacras e vida religiosa. (cap. 12)

No capítulo 13 inicia-se um preâmbulo sobre as Consagrações e nomeações episcopais (cap. 14), no intuito de justificar a desobediência ocorrida. O aludido estado de necessidade pode ser alegado por qualquer um, sob qualquer pretexto. Fica claro no próprio texto que Lefebvre sabia das penas, sabia que não havia necessidade, mas insistiu em desafiar o Papa. Foi um ato premeditado de rebeldia.

A lista de comparações descabidas chega ao Papa João Paulo II, que "ficou feliz em desobedecer quando lhe convinha", no caso das ordenações sacerdotais (não episcopais; o autor não tem senso de proporções) ocorridas na Checoslováquia em um contexto de uma ditadura comunista. Dedica o capítulo 15 inteiro a essa comparação absurda.

Para poupar a paciência do leitor, saltamos para o capítulo 17 para mostrar mais um ato falho: "em uma carta [Lefebvre] propôs uma solução razoável para a irregularidade canônica da FSSPX". Na mesma p. 200, o nível de paixão da defesa chega a um nível perigoso: "Lefebvre está em uma posição única [...], parecia ser o instrumento da Providência". Para ser justo, essa prepotência deriva do próprio Lefebvre, que disse no sermão da fatídica ordenação: "a obra que o Bom Deus colocou em nossas mãos é tal, que diante desta escuridão de Roma, desta teimosia das autoridades romanas no seu erro, desta recusa em regressar à Verdade e à Tradição, parece-me que o Bom Deus pede que a Igreja continue."

Ele já se considerava "a última bolacha do pacote".

Na p. 204 é mencionado o acordo feito entre Ratzinger, através de uma Comissão, e Lefebvre, em abril e maio de 1988, mas omite o teor (já o mencionamos). Mas ele não confiou, não honrou a palavra, e o autor ainda sugere que ele agiu inspirado por Nossa Senhora, apesar de dizer que não está sugerindo (p. 206), tamanha a audácia de tal ideia.

O capítulo 18 é uma tentativa de resumir as "razões" para as consagrações, começando, obviamente, pelo "estado duradouro de necessidade". Acrescenta-se o evento inter-religioso de Assis, uma resposta "dubia" de Roma "que afirmava uma orientação herética", os documentos do Vaticano II e "uma aparente heresia no Código de Direito Canônico". Não toca mais no verdadeiro motivo, que é simplesmente o novo Missal, como demonstrado, e prossegue em uma defesa confusa dos pontos citados. A conclusão que chegamos com esse capítulo é que "fora da FSSPX não há salvação".

O capítulo 19 pretende discutir a Carta Ecclesia Dei adflicta, que é o Motu proprio pelo qual o Papa João Paulo II declarou a excomunhão, prevista latae sententiae, em que incorreram o ordenante e os 4 ordenados sem mandato pontifício, ato que se deu em 30/06/1988. Nenhum novo argumento é apresentado, tanto que, ao invés de comentar a Carta, retoma outros temas, como a ideia de cisma, de estado de necessidade, de culpa, de confundir sujeito com instituição, e termina o capítulo citando um louvor do recém excomungado Arcebispo Viganó a Lefebvre. Tudo bem que o livro foi escrito um pouco antes disso, mas no caso de citar Bento XVI como simpático à FSSPX não se justifica, (cap. 23) tendo em vista que em "O último testamento" o memorável papa já havia demonstrado arrependimento em ter levantado aquelas excomunhões na inocente esperança de aproximação.

Falando em levantar excomunhão, no mesmo capítulo o autor tentar rebater a acusação de que Lefebvre "ainda" é excomungado. De fato, não é mais, porque morreu, e excomunhão é uma pena dos vivos (é uma pena medicinal, que visa remediar a situação; não é uma condenação ao inferno, coisa que a Igreja não faz). Morreu excomungado, sim, infelizmente.

O livro termina com um artigo do autor sobre a Missa, também criticável, mas paramos por aqui. Se o objetivo era defender a FSSPX, falhou miseravelmente, bem como só fez aumentar a convicção dos críticos de que a situação desse grupo não é nem um pouco defensável.

 



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